segunda-feira, 26 de abril de 2010

Monsanto

(*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 30 de Março de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Talvez me tenha cruzado com os poetas John Mateer e Anna Reckin enquanto passeava pelas ruelas de Monsanto, mas não tinha, então, como saber que eles também por lá andavam. Desconhecia, aliás, a existência daqueles dois poetas. Foram-me revelados pelo P2 de ontem(*) - e, no mesmo instante, senti a mordida bífida e venenosa da inveja e da cobiça. No domingo, enquanto via o entardecer a partir da minúscula e enlouquecedoramente bela esplanada do Bar Lusitano, encarrapitada no topo de um penedo, tive vontade de passar uma temporada em Monsanto apenas para poder ler, escrever, preguiçar e praticar outras actividades inúteis, como escutar o profundo silêncio que circula entre o casario de pedra e conversar com as velhas mulheres que vendem marafonas em cestinhos de vime. Calhava-me bem, pareceu-me, aquele janelão aberto sobre a paisagem imensa e talvez ali pudesse passar horas vendo o tempo transcorrer ou medindo a consistência da neblina diante do contorno das serras ao longe.

Enquanto fracção do tempo, o domingo não é (infelizmente) elástico, característica que se agrava quando, durante a madrugada, por causa da mudança para o horário de Verão, se perde uma hora inteira num só segundo. Por muito que se corra, não é possível visitar Belmonte e Sortelha fazendo de conta que não há pressa, dando as mãos e parando para fotografar (quase) tudo, almoçar como deve ser e, depois, chegar a Monsanto a tempo de prestar ao sítio a homenagem que ele merece. Seria uma insanidade e um despautério sem nome andar a correr pelas vielas de Monsanto sem chegar a pressentir o silêncio que lá há. É necessário tempo para escutar o balido das cabras e trocar as boas tardes com o pastor que fica sentado diante da paisagem, trocando olhares metafísicos com uma parelha de cães. A Monsanto, creio, deve chegar-se levando na bagagem as subtis e simples lições expressas, por exemplo, n’O Livro dos Prazeres Inúteis, de Tom Hodkinson e Dan Kieran; ir preparado para actividades tão fundamentais como a contemplação das coisas que voam, a observação de nuvens, a deambulação ociosa, a cigarrilha às escuras ou a apanha de folhas das árvores em pleno voo.

Uma vez que “não há nada que seja menos prejudicial ao ambiente do que não fazer nada”, hei-de voltar a Monsanto para sentir a chuva e o vento no rosto e, então sim, trepar devagar pelo caminho que leva ao topo do monte para penetrar nas muralhas do castelo e, a partir daí, ver o mundo como uma coisa vasta e quieta. Molhados e enregelados, regressaremos, depois, à casa quente, tomaremos um banho e, envolvidos num roupão, faremos um chá, abriremos preguiçosos braços e experimentaremos outros infinitos prazeres passíveis de serem praticados em locais assim (mais concretamente aquele que Fernando Pessoa estabeleceu nos versos “Ter um livro para ler/E não o fazer!/Ler é maçada,/Estudar é nada./O sol doira/Sem literatura”). Lá fora, o galo metálico permanecerá quieto sobre a torre da igreja e uma velha percutirá um adufe com a ponta dos dedos. Talvez seja domingo.