sábado, 10 de abril de 2010
Espantalhos mal empalhados
Fernando Vallejo, o escritor colombiano, diz, numa entrevista ao suplemento Babelia do El País, algo como “não se escreve o que se quer, mas apenas o que se pode”. Ele quis que o seu mais recente romance, El don de la vida, fosse uma espécie de epitáfio literário, cheio de dor e tristeza, mas, depois, o livro encheu-se de vida, de mendigos, prostitutas e engraxadores de sapatos, do modo de falar de Medellin. Às vezes, bem sei, sucede-me precisamente o contrário: tento arrastar para o que escrevo as pessoas vivas que vêm comigo no autocarro, no metro, aqueles com quem me cruzo na rua, as palavras que dizem, os gestos que fazem, os instantes de melancolia captados em algum olhar, mas o resultado é invariavelmente torpe. Vejo, depois de escritas, cada uma dessas pessoas vivas e parecem-me espantalhos toscos, mal empalhados. É bem verdade, pois, que não se escreve o que se quer, mas apenas o que se pode - e, afinal, não posso quase nada.