terça-feira, 27 de outubro de 2009
Saudades de Paris
Bem curioso é o funcionamento do mecanismo que regula a associação de ideias e gera as belas coincidências. Mal tinha, um dia destes, acabado de ler a passagem de Fiesta na qual Jake Barnes passeia pela parisiense Île de Saint-Louis, quando, pela noite, escutei a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade falar na televisão sobre o acordeonista de rua (húngaro, parece) que ela se habituou a escutar quando atravessava uma das pontes de acesso à ilha, a caminho da casa onde já não mora. Lembrei-me, acto contínuo, da minha única passagem por Saint-Louis, num domingo à tarde, e fui mordido pela língua bífida da nostalgia e da saudade. Logo me ocorreu também o conto Las Babas del Diablo, do argentino Julio Cortázar, que deu origem ao filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, e cuja acção, ao contrário do que sucede no filme, decorre precisamente na pequena ilha onde Mayra Andrade morou durante oito anos, salvo erro.
Quem perceba um pouco o funcionamento desregrado do cérebro de certos parasitas do alheio (normalmente designados pela equívoca expressão “escritor”), compreenderá que a semana estava definitivamente comprometida para a lida das questões comuns e mais talhada para o devaneio. Um tema tocado a meio de um concerto de jazz entre o arvoredo de Serralves obrigou-me a recordar a infinita melancolia de Round Midnight, o filme de Bertrand Tavernier sobre as ruínas de um velho saxofonista norte-americano em Paris. Depois, à noite, a Orquestra Jazz de Matosinhos tocou duas vezes (duas!) April in Paris durante o concerto dedicado à big band de Count Basie - e fazia ainda mais sentido que dançássemos em vez de ficarmos sentados nas cadeiras do Teatro Constantino Nery, que Mayra Andrade ali estivesse e pudéssemos dançar juntos, ela sorrindo daquele modo encantador e muito luminoso que, quando passa pela Pont de Sully, deve fazer com que seja sempre Abril em Paris outra vez.
Imagino, pois, esse acordeonista húngaro que, durante oito anos, viu passar regularmente Mayra Andrade, e que, vendo-a, não dizia uma palavra e apenas dedilhava uma ou outra daquelas romanticíssimas canções que compõem a mágica e vaporosa banda-sonora de Paris; imagino-o e prefiro que seja, antes, Roberto Michel, o tradutor chileno do conto de Córtazar, agora acordeonista amador (em vez de fotógrafo nas horas vagas), que vem para a rua tocar melodias para combater o vazio e a excessiva imobilidade da máquina de escrever Remington (“petrificada com esse aspecto duplamente quieto que têm as coisas móveis que se não movem”) e assiste, não a um homicídio, mas à fulguração quotidiana de Mayra Andrade vinda dos lados do Boulevard Saint-Germain. E que, em vez de um conto muito angustiado, Cortázar escreveria antes sobre o suave milagre que é ver circular a menina crioula pelas ruas de Paris, com olhos muito grandes, em cuja alvíssima córnea há um ponto negro que os torna ainda mais únicos. Como um dia de sol em Paris.
Crónica publicada no P2 do Público, no dia 21 de Julho de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há nova remessa. Ficam avisados.