quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Uma voz dentro da cabeça

Quando esteve no Porto para apresentar O Colecionador de Mundos, o escritor búlgaro Ilija Trojanow leu alguns excertos da obra, no alemão original, que o público podia acompanhar graças à projecção da tradução num ecrã. Nas passagens relativas à expedição de Burton a África, o autor do livro deu à voz do guia Sidi Mubarak Bombay uma entoação diferente, cava, rouca e fraca, perfeitamente adequada ao velho que recorda as aventuras do passado, contando-as aos amigos que se reúnem à porta da sua casa até entupirem a viela onde mora.

Hoje, enquanto lia a narração de Bombay na sala de espera do centro de saúde, não pude deixar de evocar aquela voz profunda e sábia. De certo modo, ouvia-a dentro da cabeça, felizmente capaz de se sobrepor ao som da televisão, contando como um mwanga o enfeitiçou enquanto decidia a sorte da expedição (e também como guardou para si o barrete que devia ajudar o mwanga a decidir-se pelo sucesso da viagem).

Pouco depois, findo o breve avistamento com a médica de família, passei a ouvir uma outra voz dentro da cabeça — a da senhora doutora (a quem também não ofereci um barrete para que suavizasse o meu diagnóstico) prescrevendo-me que evite as gorduras e o álcool, que faça exercício físico e que deixe de fumar. Entre os sortilégios de uns e as análises clínicas de outros, creio que sou capaz de continuar a preferir ouvir as histórias que Sidi Mubarak Bombay tem para contar.