domingo, 27 de maio de 2012

Múltiplas vidas

Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 20 de Maio


Li há alguns meses, num café, umas quantas páginas de Puta Que Os Pariu, a biografia de Luiz Pacheco que João Pedro George escreveu. Gostei do que li. Mas interessam-me tão pouco as biografias, e as autobiografias, que quase nunca leio alguma coisa que me cheire a tentativa de resumir a vida de alguém ao formato limitado de um livro.

Em defesa deste meu desinteresse não posso invocar, sequer, o argumento que António Lobo Antunes recentemente explicava numa crónica da revista Visão. Se a memória não me falha, o escritor alegava que o John Cheever que se lê na biografia dele não é o John Cheever real, mas apenas o John Cheever que o biógrafo construiu a partir de uns quantos factos da vida do escritor norte-americano. Com as autobiografias é capaz de suceder a mesma coisa. São sempre fabricações parciais e imprecisas, reconstituições da memória que sobreviveu ao turbilhão dos dias.

Em Ar de Dylan, o mais recente romance de Enrique Vila-Matas, a personagem Vílnius Lancastre, especialista em fracasso ao ponto de falhar mesmo quando se empenha em fracassar, lida também com a impossibilidade da biografia. Propõe-se, a dado passo, reescrever, com Débora Zimmmerman, a autobiografia do pai, o falecido escritor Juan Lancastre, cujas páginas se teriam perdido. Quando a intenção é anunciada, numa espécie de clube de fãs de Juan que se reúne numa livraria de Barcelona, Vílnius refere o exemplo da autobiografia de Laurence Stern, recordando que as Memórias da Vida e Família foram, afinal, encomendadas pela viúva do escritor, a braços com problemas de liquidez.

“Em todo o caso”, nota uma fugaz personagem do livro de Vila-Matas, “nunca houve boas biografias de um bom romancista. Não pode haver. Um romancista, se é muito bom, é sempre demasiadas pessoas. Lancastre tinha muitas vidas numa só. Se, ainda por cima, a autobiografia é breve [como a de Juan Lancastre seria], talvez não chegue nem para uma pessoa”.

Mas nem sequer é por isso que a biografia de John Cheever me deixa tão indiferente como qualquer outra. Muito simplesmente, entre uma pessoa real e outra imaginária, tendo quase sempre a preferir a personagem de papel e tinta – como, por exemplo, o pai de Cheever tal como Vila-Matas o narra em Ar de Dylan. Diz ele que, no final do século XIX, o senhor Cheever trabalhou como modelo para o escultor que talhou a espécie de Atlas que decorava a fachada do hotel Königspalast de Munique, destruído na II Guerra Mundial. Mas em 1935, quando John Cheever viajou a pé pela Alemanha, ainda viu o hotel e reconheceu as feições do pai, cujos ombros suportavam o dintel do edifício. E depois John também viu o pai numa fachada de Frankfurt, segurando as varandas do Frankfurter Hof, e a impressão repetiu-se em muitos hotéis, bancos e blocos de apartamentos, não só na Alemanha, mas também em Yalta e em Kiev. E continuou a vê-lo, depois da guerra, despedaçado entre os destroços da Alemanha destruída. Mas isto, provavelmente, já é literatura.