segunda-feira, 5 de março de 2012

Com o pé direito*


Hei-de ter-me transformado, este fim-de-semana, num dos poucos indivíduos que se podem gabar de terem saído de um encontro literário praticamente em ombros — sem glória nenhuma, mas a mancar e com o tornozelo esquerdo muito inchado. Foi exactamente assim que abandonei, no domingo, o hotel onde costumam ficar alojados os participantes das Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.

Há quem tenha feito de tudo para, durante os três dias que durou o evento, chegar à fala com o escritor brasileiro Rubem Fonseca, o centro de todas as atenções, fosse para conseguir um autógrafo seu ou para ser fotografado ao lado dele. O Valter Hugo Mãe chegou a declarar publicamente que queria engatá-lo e dormir com ele, e a insinuar que eu pretenderia fazer a mesma coisa, mas aproveito para declarar, para os devidos efeitos, que nunca tal coisa me passou pela cabeça. Em contrapartida, consegui sair da Póvoa a mancar, caminhando muito devagar, exactamente igual àquele velhinho careca e lento que é o Rubem Fonseca quando está sozinho e entregue ao sossego de ser uma pessoa normal e idosa que desce a rampa de um hotel a caminho da rua.

Não estou, assim, em posição de criticar nenhuma das pessoas que assediaram o escritor brasileiro. O meu exemplo só serve, aliás, para demonstrar que os mortais estão dispostos a fazer qualquer coisa, por muito estúpida que seja, para se aproximarem dos génios como ele e para os imitarem na medida das suas parcas possibilidades. E eu não só saí da Póvoa a mancar como também achei o Rubem Fonseca muitíssimo parecido com o meu tio Luís de Castelo de Vide, que também era pequenino, magro, careca e dotado de grandes orelhas; e que, nos seus últimos anos, também mancava um bocado quando, em Agosto, descia à Carreira de Cima para me levar a lanchar talhadas de melancia e boleima em sua casa. Gostava muito deste meu tio que foi bombeiro voluntário até aos setenta e tal anos e só fumava cigarros Kentucky, pelo que olhar para o Rubem Fonseca tal como ele hoje é me enterneceu muito particularmente.

Também foi bastante emocionante ouvir o Rubem Fonseca a declarar o seu amor a Portugal e à Língua Portuguesa (coisa que os portugueses raramente fazem), e a recitar um soneto de Camões cujos últimos versos — “Que dias há que n'alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê” — eu sabia de cor e sussurrei baixinho, ainda longe de imaginar que também acabaria por sair da Póvoa um pouco combalido e com dores, e que neste estado escreveria a minha última crónica neste espaço, o derradeiro Bisturi. Abandono, pois, esta coluna mancando, com o tornozelo esquerdo inchado e rebentado por uma noite de dança um pouco insana, frágil como um velho cujas articulações são muito mais antigas do que o juízo que tem. Felizmente, e como bem notou o Gonçalo M. Tavares, eu escrevo com o pé direito e a crónica está feita. Saio com Rubem Fonseca e, como ele, a mancar. Dificilmente me poderia ocorrer melhor despedida.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 28 de Fevereiro de 2012