segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Máquina de escrever*



No final de Abril, salvo erro, os jornais noticiaram o encerramento da única fábrica que ainda produzia máquinas de escrever mecânicas. A Godrej & Boyce, com sede em Bombaim, só tinha conseguido vender, no ano passado, oitocentos exemplares do seu último modelo, quando, na década de 1990, já em plena vigência da informática e dos documentos em Word, a empresa ainda comercializava 50 mil máquinas de escrever por ano.

Li as notícias e fui acometido por uma nostalgia patética: imaginei que escreveria um romance de resistência, totalmente dactilografado, no qual começaria por narrar como tinha ido a correr a uma casa de antiguidades à procura da máquina que me havia de acompanhar nessa insensata aventura. Antes disso, porém, consultei bases de dados na internet dedicadas ao velho artefacto. A escolha devia ser devidamente ponderada, pois não seria a mesma coisa usar uma Remington ou uma Hermes, semelhantes às que foram utilizadas por alguns dos escritores que admiro, ou optar, em vez disso, por uma marca menos conhecida, uma Cole-Steel ou uma Facit. O ideal, em todo o caso, seria tornar-me proprietário de uma Corona, velha e belíssima, com grandes teclas redondas, igual à da fotografia a preto-e-branco que guardo no desktop do computador.

A nostalgia que senti foi tanto mais estranha quanto o meu convívio com as máquinas de escrever foi muitíssimo breve e diletante. Ainda aprendi dactilografia numa disciplina do liceu que se dedicava, também, a ensinar-nos a fazer tapetes de Arraiolos e artesanato em barro, bem como a preencher vales dos Correios e impressos de registo postal. Mais ou menos na mesma altura, também comecei a escrever um romance na máquina de escrever que um tio meu tinha em casa: um policial que, tanto quanto me lembro, incluía uma intriga internacional relacionada com as mulheres-girafa da tribo Padong.

Os computadores pessoais apanharam-me em plena adolescência, pelo que toda a minha vida profissional foi passada diante de ecrãs e processadores de texto, beneficiando das comodidades que a tecnologia introduziu: apagar, copiar, cortar, colar. Cheguei ainda a trabalhar, num escritório de contabilidade, com um daqueles Olivetti com um monitor pequeno e negro, onde tudo o que se via eram algarismos, letras e sinais, em verde ou laranja. Logo a seguir, quando comecei a trabalhar no Público, em 1989, vi-me diante dessa pequena maravilha que era, então, o Apple Macintosh Classic II. Era um novo mundo que se me abria, com as suas janelas, os seus ícones clicáveis e, sobretudo, com uma incrível facilidade de utilização.

Nunca mais pensei nas máquinas de escrever como instrumentos de trabalho. Mas agora que acabaram de vez, ocorre-me que gostaria de ter uma – um objecto antigo e belo que fizesse companhia ao rádio Nordmende que foi dos meus avós e à Zorki-4 e à Flexarell que comprei a preços de bric-a-brac, com as quais ainda fotografei por desfastio. Talvez, se tivesse uma Corona, ainda tentasse escrever o tal romance.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 23 de Agosto de 2011