segunda-feira, 16 de maio de 2011

Shrek e o burro*



Há quem acredite que o casamento é uma instituição ultrapassada e em crise. E existem pessoas, como os brasileiros Denise Flores e Marcelo Basso, que não se cansam de tentar encontrar uma forma de o reinventar, mesmo se as estatísticas do divórcio parecem aconselhar, no mínimo, alguma ponderação. Denise e Marcelo decidiram transformar o casamento numa coisa digna de um conto de fadas e uniram-se pelos sagrados laços do matrimónio na igreja matriz de Garibaldi, no Sul do Brasil. Ela, uma cabeleireira de 30 anos, compareceu fantasiada de princesa Fiona. Ele, um artesão de 39, casou-se vestido de Shrek, o ogre verde dos filmes de animação. A maioria dos seiscentos convidados da festa de Denise e Marcelo alinhou na encenação e ajudou a reconstituir a cinematográfica cena, mascarando-se a preceito. Havia, segundo A Folha de S. Paulo, um gato de botas, um burro, reis e rainhas, mas também piratas e pessoas com os trajes típicos da região gaúcha.

A despeito da bizarra indumentária dos nubentes, a celebração seguiu escrupulosamente os rituais católicos e parece ter corrido bem. Tanto quanto é possível saber, Denise e Marcelo continuam casados, cumprindo os votos. Não se deve, aliás, descartar a hipótese de, contra toda a probabilidade, virem a ser felizes para sempre, como costuma acontecer em Bué, Bué de Longe e nos desenhos animados em geral.

Pouco sensível, porém, às pequenas alegrias da existência terrena, o bispo de Caxias do Sul não gostou da extravagância e puxou publicamente as orelhas ao padre que cometeu a imprudência de celebrar a heterodoxa cerimónia. Numa nota oficial, D. Paulo Moretto considerou que os católicos têm “ritos e linguagem adequados”, pelo que os trajes do casamento devem ser “fundamentados na fé e não inspirados na imaginação e na fantasia”. Ou seja: os consortes devem pagar o aluguer da igreja, conforme vem nas escrituras, e comparecer com fatiotas reluzentes, ela de espampanante vestido branco, ele de fraque e gravata, exactamente como fizeram Adão e Eva quando, no Paraíso, constituíram a família inaugural.

Os bons católicos, na verdade, deveriam ser capazes de se absterem de toda a fantasia e de suspenderem absolutamente a imaginação. Seria aconselhável, por exemplo, que se privassem de acreditar em homens muito velhos dotados de super-poderes demiúrgicos, oceanos abrindo-se para ceder passagem a cidadãos em fuga, gente sendo criada a partir de costelas alheias, pães e peixes multiplicando-se a eito ou virgens pairando sobre oliveiras diante de crianças parolas e indefesas - histórias tão bestialmente estapafúrdias que nem J.R.R. Tolkien, J.K. Rowling ou William Steig se teriam lembrado delas. Não fosse, porém, pela capacidade humana de fantasiar um pouco e talvez já ninguém se casasse. Sem uma ponta de loucura, é até possível que Jesus Cristo, Maomé ou algum mitómano mais recente tivessem acabado por confrontar os respectivos adeptos com a pergunta que Shrek fez ao burro: Por que é que me estás a seguir?


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 3 de Maio de 2011