segunda-feira, 23 de maio de 2011

É um assalto*


Há exactamente dezoito anos, um dia depois do nascimento da minha filha, fui assaltado pela primeira vez. Ia a sair da casa de banho de um centro comercial, a caminho da maternidade, quando fui abordado por um indivíduo com maus modos, a ressacar, o qual me exigiu que lhe desse o dinheiro que tinha. Com dez contos no bolso de trás das calças, só lhe dei duas ou três moedas. Ele insistiu, ameaçador, e eu repeti, repeti e repeti que não tinha dinheiro comigo. Quando consegui ganhar espaço para empurrar o assaltante, fugi a correr. Um polícia à paisana que por ali andava achou que o meu sprint era suspeito e veio atrás de mim.

Lembro-me de ter pensado, na altura, que era bastante estúpido ter engendrado uma criança que acabaria a viver num mundo onde acontecem coisas assim. A Maria Miguel, porém, demonstrou que valia mesmo a pena ser pai dela. É um ser humano excepcional, responsável e carinhoso, uma companheira que dá sentido mesmo aos meus piores dias.

Há seis meses, quando saía de um restaurante onde tínhamos acabado de almoçar, voltei a ser assaltado. Dois indivíduos mostraram-me uma faca e obrigaram-me a levantar trezentos euros no multibanco. Desta vez a Maria estava ao meu lado, tão assustada e aterrorizada como eu, mas portou-se admiravelmente e só desmoronou quando os cabrõezinhos se foram embora, livres e tendo-se abotoado com o equivalente ao ordenado de muito boa gente. Senti impotência e muita raiva. Abracei a Maria e murmurei várias vezes “já passou, já passou, vai ficar tudo bem”. O susto, obviamente, acabou esquecido. Mas a minha filha nunca mais quis ir àquele restaurante (eu também demorei algum tempo até voltar a entrar na casa de banho do Brasília).

Não poderia ter tido mais sorte com a minha descendência do que aquela que tive, mas, às vezes, ainda me parece que posso ter-me precipitado um pouco quando decidi conceber e criar dois filhos, condenando-os a viver num mundo como este, sobretudo agora que já se conhecem as consequências de décadas de desgoverno e as implicações práticas do filantrópico auxílio do FMI às finanças da pátria. A fim de “impulsionar o mercado financeiro” e “reduzir a dívida externa”, serei meticulosamente aliviado, sem receber alguma coisa em troca, de quantias muito superiores àquela que me foi roubada pelos larápios de há seis meses. Ao contrário do que sucedeu há dezoito anos, não me servirá de nada tentar fugir. Se houver um polícia por perto, ele virá outra vez atrás de mim e, agora, não se satisfará com uma explicação; dir-me-á que os assaltantes têm a lei do seu lado e que eu tenho que entregar tudo aquilo que eles quiserem exigir.

A Maria Miguel tem assistido às notícias com interesse e sentido crítico. Eu inquieto-me um pouco com o futuro que vai ter, mas ela continua a pensar que vale a pena esforçar-se por ser uma boa aluna, dedicada àquilo em que acredita (mesmo se o mercado de trabalho parece contrariá-la). Acha que o seu empenho acabará, um dia, por ser recompensado. Tenho, naturalmente, muitas dúvidas. Mas espero que ela tenha razão.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 10 de Maio de 2011