quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O país que pesava demais (uma homenagem a Malangatana)



© José Carlos Marques 2005

(a partir do quadro A Minha Flauta Canta, 1974/75)

No canto da sala, o catalão Lluís Llach canta “Criatura Dolcíssima”, seguindo o poema de Joan Fuster. Escuto, pois, o que LLuís Llach canta ao piano e, querendo, posso ouvir também, ao fundo, soando de nenhures, a flauta do homem de Malangatana dobrando certas notas, compondo uma melodia qualquer que se assemelha às palavras de um cântico. Escuto e vejo os seres que nascem desse sopro e logo mergulham nos claros abismos da esperança, e enxergo a flauta que canta entre as mãos dele e aí perdura, as carícias com que os dedos grossos a percorrem e tangem, e noto os músculos retesados das pernas flectidas. Nada, que eu saiba, liga Llach a Malangatana. Mas, escutando e vendo ao mesmo tempo, me parece óbvio que seguem a mesma música e os mesmos gestos, que esse corpo dulcíssimo que canta um pode ser o desta flauta que desenhou o outro e aí está agora, parindo criaturas aladas como uma inaugural boceta que seja a origem de todas as coisas, dos anjos e dos demónios, daquilo que cria e daquilo que destrói.

Noto: os olhos do flautista são tristes — tristes de um pânico antigo. A carne dele tem chagas de onde goteja gente. Os seres alados nascidos do sopro têm dentições contundentes com as quais se podem devorar mutuamente (como fazem, às vezes, os homens que não habitam as obras de arte) ou destruir colheitas como as pragas bíblicas. Alguns espreitam ainda desconfiados a melodia nova. Outros estão tristes, desconsolados, derrotados já. O homem da flauta é velho e rotundo o ventre dele — inchado como as barrigas dos meninos que têm fome.

Posso especular: que o flautista aí está sentado desde o início dos tempos e que o canto da flauta dele é o verbo que liberta e está no início de tudo. Que os olhos antigos que ele tem já viram todas as coisas do mundo e o tempo que sobre elas transcorreu; e que, estando aí sentado, quieto e paciente como um Deus, não fez o homem mais do que esperar pelo dia em que a flauta pudesse finalmente cantar as mil e uma histórias com que a Liberdade se conta e anunciar a chegada dela aos povos ocultos das matas e dos caniços. Que, enfim, e como afiança o ditado, o pobre se habituou a desconfiar das esmolas mais tamanhas e que, por isso, apenas se atrevem a espreitar aqueles que escutam a anunciação da flauta.

Posso imaginar — sendo isto o que mais me apraz: era uma vez um velho muito velho que vivia num país cujas pessoas carregavam sobre si o peso quintuplicado de uma gravidade excessiva e desproporcionada, a qual confirmava as leis de Newton mas logo multiplicava por cinco os resultados das equações da massa dos corpos, de tal modo que a maçã que, reza a lenda, caiu da macieira sobre a cabeça do dito Newton, enquanto este dormia a sesta, teria rebentado a cabeça ao senhor caso fosse uma maçã nascida numa árvore deste país. Ou seja: ali todas as coisas pesavam tremendamente, como se a própria terra, em vez de as atrair, tentasse sugá-las para o seu bojo. Assim era. E por força deste modo que as coisas e as pessoas tinham de pesar muito mais do que a matéria delas fazia supor, tudo tendia a estar fatigado e imóvel. Os frutos das árvores faziam vergar os galhos até quase tocarem no chão, os animais comiam apenas aquilo que nascia ao seu redor ou que inadvertidamente por ali passasse, os rios quase não se moviam e mesmo as aves relutavam tremendamente em voar, assemelhando-se todas às galinhas pesadonas e pouco lestas que existem nas capoeiras dos demais países da Terra. Os homens, não sendo excepção ao desregramento que por ali fazia as vezes de regra, tinham igualmente extrema dificuldade para se locomoverem — às vezes ainda forcejavam por isso, arrastados por um ímpeto qualquer, talvez um resquício, que em todo o humano exista, da curiosidade natural que levou uns quantos primatas antigos a erguerem-se nas patas posteriores e a caminharem de pé. Mas, se a este impulso cediam os habitantes do país em que tudo era pesado, tão-logo as forças deles cediam ao cansaço extremo. Sentavam-se à sombra das árvores de ramos vergados ao peso da fruta e aí ficavam, alimentando-se apenas das polpas e das folhas que tinham à mão. Sem mais distracções do que ficarem sentados a ver o mundo acontecer em volta, os homens e mulheres desse país envelheciam com invulgar rapidez, por não terem muito em que ocupar o tempo, e desenvolveram enormes olhos, para enxergar melhor, disto resultando que, não raro, faleciam mirrados e encarquilhados como ameixas secas, mas com uma visão agudíssima. Ninguém usava óculos.

No país das coisas pesadas existia, pois, um velho, o qual era lendário entre os seus, asseverando-se que jamais morria, pois estava sentado numa sombra fazia já muito tempo, pelo menos desde que tinham nascido os pais dos actuais habitantes, e os pais deles e os pais destes, a partir dos quais as narrações sobre a estranha longevidade do velho se perdiam na noite dos tempos e havia, por isso, quem assegurasse que ele vivia desde sempre e para sempre. Deste facto decorria a ignorância das gentes acerca de um pau que o velho continuamente esculpia com a lâmina de um canivete, pois todos se recordavam de o ver fazendo os mesmos gestos (afagando o fio da navalha na carne da madeira) e de escutarem os pais e os avós contarem coisa semelhante. Muitos gostariam mesmo de lhe perguntar o que fazia, mas sucedia que o velho mais velho do que todos permanecia muito imóvel sob uma figueira antiga e vizinha de mais nenhuma sombra, pelo que apenas podiam gritar-lhe de longe e jamais alguém tinha escutado qualquer resposta, ainda que, graças aos aguçadíssimos olhos que tinham, muitos conseguissem ver que esse velho movia os lábios como se estivesse retorquindo às perguntas que as brisas lhe levavam.

Sucedeu há já muitos anos que um dos pesados moradores da terra da gravidade excessiva devotou os seus últimos anos a uma penosa viagem, indo da árvore em que se tinha deixado ficar desde que se cansara de rastejar até à figueira retorcida onde o velho sempre estava, empenhando-se nisto precisamente com o fito de se inteirar do segredo do pau que o mais antigo sempre estava esculpindo. Era sua intenção regressar a tempo de contar aos demais a história que escutasse, mas, fosse porque o velho falasse com vagar, fosse porque a percepção da distância o traísse, o certo é que jamais regressou. Os factos vieram, porém, a saber-se, ou não os estaria narrando aqui e agora, nisto residindo igualmente prova de que a paciência é uma virtude que devia ser tomada em melhor conta e praticada com maior frequência.

Sucedeu assim: quando, por fim, o velho mais velho de todos terminou de explicar os motivos de tanta idade e a finalidade do labor que dedicava a aplainar seu pau, o concidadão que ali se tinha deslocado encetou o caminho de regresso, ainda mais devagar e penosamente do que na ida, pois envelhecera já um tanto e o peso do seu corpo não parecia ter diminuído, antes pelo contrário, parecendo-lhe mais longa a volta do que recordava ter sido o trajecto inverso. Quando pressentiu que as forças lhe faltavam, ocorreu-lhe escrever na areia do país as sábias sentenças e os bons ensinamentos que escutara ao velho, nisto tendo gasto quase a vida toda que lhe restava e o ânimo que ainda possuísse. Deixou-se cair no chão quando constatou ter posto o último ponto final após a derradeira palavra e aí ficou até que o sol o fulminasse e lhe secasse a carne toda que tinha agarrada aos pesados ossos, os quais logo se acharam também enxutos e ocos, apenas um fio daquilo que tinham sido, mera quilha carcomida daquilo que, um dia, fora um corpo inteiro e excessivamente denso.

Não basta, porém, que uma história se escreva na areia para que alguém a leia e, deste modo, dela se inteire e possa repeti-la. Isto apenas o velho tinha meios de alcançar, pois houve um dia, muito mais tarde, em que o pau que talhava na lâmina da navalha ficou pronto e veio a ser, afinal, uma flauta. O homem antigo ergueu-se, pois, da posição em que há muito tinha acomodado o corpo sob a retorcida sombra da figueira e, aproximando a flauta da rotunda barriga dele — inchada como as dos meninos que têm fome no mundo dos outros —, mirou e remirou a obra de tantos anos, não sabendo se ter medo, se ter esperança, se ter pressa em levar a flauta aos lábios a fim de que emitisse os primeiros sons. Tinha nas mãos um frémito, uma febre triste no olhar: caso estivesse certo o que passara mil vidas pensando, caso tivessem sido precisos todos os gestos da navalha sobre o gomo da madeira, algo sucederia no instante em que a primeira nota tocasse a densidade do ar daquele país inusitadamente pesado.

Decidiu-se, enfim, a empunhar a flauta, agarrando-a pelas extremidades, junto ao ponto onde gravara os entalhes mágicos, e nela soprou pelo orifício a tal destinado, logo se escutando um silvo que não era ainda melodia ou sequer música. Só depois, quando as notas se juntaram e passaram a formar frases, se assistiu ao milagre de ver pequenos e penugentos corpos de gente pequena e muito leve, tão sem peso que ficavam um pouco a pairar no ar, mordiscando-se como fazem certos peixes. Só depois de flutuarem por um bocado os braços e pernas dessas estranhas pessoas começavam a ganhar consistência verdadeira, logo descendo em suave voo, quase pairando, até tocarem no chão muito levemente e saírem caminhando, correndo e pulando como se endiabrados, parecendo isentos da excessiva gravidade que mantinha agarrados à terra todos os habitantes do país.

Sem nunca parar de tocar, o velho que era muito velho — e cujos olhos tinham uma tristeza cansada que o movimento agitados dos dedos desmentia — principiou a bater com um pé na terra ao compasso do cântico que a flauta tocava e assim soube que as pernas e os braços não pesavam já o que tinham pesado antes e que a maldição do seu país tinha terminado. Ordenou, pois, com um só gesto que a gente nova nascida da música fosse pelos campos e pelas montanhas avisando todos da boa nova. E eles foram correndo a espinoteando como diabretes e as pessoas do país viram-nos chegar perto dos seus imensos e aguçados olhos e esconderam-se assustadas e tementes, apenas se atrevendo a espreitar de trás das árvores e por entre os caules dos canaviais. Mas logo, percebendo o que se dizia, arriscaram também erguer-se sobre as pernas e foram a correr e dançar ao som da longínqua cantiga do homem mais antigos de todos, festejando o fim do peso e da prisão que os mantinha imóveis como enormes e obesos animais.

Assim foi.

(2006, publicado no livro O profundo silêncio das manhãs de domingo, edição Quasi/revista Sábado, 2007)