(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 5 de Outubro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Tratava-se, pois, de dar palha ao animal. Grave e sério, como convém, o primeiro-ministro iniciou, na passada quarta-feira, uma peregrinação televisiva para comunicar aos portugueses que a besta voraz dos mercados precisa, outra vez, de ser alimentada. Como não temos feito outra coisa pelo menos desde que, há dois anos, os mercados ameaçaram fazer colapsar o mundo tal como o conhecemos, somos agora convocados a participar em mais um peditório nacional destinado a reunir fundos para a nova dose de forragem. Somos rijos, havemos de aguentar.
O esquema funciona admiravelmente. Se os mercados estão desregulados, convocam-se os orçamentos estatais para tapar o buraco. Se os orçamentos estatais ficam desequilibrados, os mercados ameaçam destrambelhá-los ainda mais, aumentando o risco da dívida pública (ou lá o que é). Em qualquer caso, a cena acaba sempre por fazer lembrar o epílogo de Casablanca, quando Rick mata o oficial alemão e o chefe da polícia, cúmplice, pisca o olho e manda prender os suspeitos do costume. Neste caso, os suspeitos do costume somos nós. E também não sabemos do que estamos a ser acusados.
Se isto não fosse trágico, seria cómico. Mas um sátiro é capaz de enxergar comicidade mesmo nas situações mais desengraçadas. No mesmo dia em que José Sócrates, condoído, anunciou ao país o próximo assalto perpetrado em nome dos mercados, fui contactado, via e-mail, pelo capitão Frank Markovski, um soldado ao serviço da NATO no Afeganistão. Propunha-me que participasse numa operação destinada a fazer sair daquele país 120 milhões de dólares encontrados em Tora Bora - e que não contasse isto a mais ninguém (ups!). Quase à mesma hora, telefonaram-me do banco de que sou cliente há 25 anos para me desafiarem também a “investir” (provavelmente em alguma das muito vantajosas “aplicações financeiras” disponíveis nos famosos mercados).
Como tenho imensa dificuldade em distinguir um vigarista verdadeiro de um falso trampolineiro, fiquei indeciso entre os milhões do capitão Markovski e as delícias das aplicações financeiras. O militar, ao menos, propõe-me algo que parece destinado a ludibriar os mercados em vez de cair nos braços do inimigo. Se não acreditasse na insensatez de viver só do meu trabalho e quisesse realmente escolher um dos negócios, acho, pois, que apostava tudo no guito de Tora Bora, mesmo que movido por sentimentos ruins (raiva, desejo de vingança) e por não ter ainda sido roubado e enganado pelo capitão Markovski. Afinal, quando o governo anunciou a criação de um pequeno imposto sobre os lucros bancários, não foi o capitão Markovski quem veio comunicar que o dito imposto seria pago pelos clientes dos bancos. Parecendo que não, isto faz alguma diferença.
Assim, quando tudo correr mal e vierem outra vez apresentar-me a conta da palha que é preciso dar ao animal, a mirífica fortuna afegã poderá continuar a ser, como a Paris de Rick e Ilsa, o elemento onírico e romântico que me podia ter feito feliz. Se mantiver Tora Bora à distância, terei sempre Tora Bora.