terça-feira, 10 de novembro de 2009

Gostar de vacas



Quando era pequeno, ia muitas vezes à aldeia da minha mãe, Avitoure (de Baixo). No início nem sequer havia estrada para lá chegar e tínhamos que apear-nos do carro em Travassos e, depois, seguíamos a pé por um caminho de pedras muito irregulares onde transitavam, às vezes, carros puxados por vacas, com rodas de madeira que chiavam tremendamente. A memória dessas viagens é como uma máquina do tempo na qual gosto de embarcar em tardes de maior melancolia.

Quando era pequeno, nada do que havia na aldeia me parecia muito estranho: as vacas, as barbas de milho, as couves tronchudas, as laranjas amargas, as orações para talhar os pulsos abertos, as maçãs supriega e as raparigas que engravidavam no meio dos campos faziam parte de um mundo que me era próximo. Mesmo morando na cidade, tinha um galinheiro no fundo do quintal, uma ramada por cima do poço, uma casota com coelhos, peixeiras que apregoavam a “bibinha!” e hortas ao fundo da rua, à margem da Linha da Póvoa. Mas agora as minhas memórias desse tempo, que não são de há tanto tempo assim, devem parecer bestialmente bizarras aos meus filhos, habituados a ver tudo na internet e a ter o Metro do Porto a circular onde antes passava uma automotora vermelha e branca que apitava na passagem de nível. Eles nunca deram de comer às vacas ruivas do tio Idalino e não podem imaginar o maravilhoso sabor que tem o leite antes de ser pasteurizado e metido em pacotes.

Sei que estou a ficar velho quando penso nestas coisas e começam a ocorrer-me expressões como “no meu tempo...”. Ou quando me emociono ao ver uma vaca. Uma vez, na ilha de S. Miguel, fui cercado por dezenas de vacas malhadas que pareciam ter decidido libertar-se de todas as excreções ao mesmo tempo, precisamente quando passavam pela janela do carro e me olhavam de lado, bovinamente. Outra pessoa talvez sentisse repulsa – eu emocionei-me como alguém que regressa a casa ao fim de muito tempo.

Não sei como é com os outros amantes da carne, mas eu respeito muito todos os animais que ingiro às refeições. Às vacas, para além disso, vejo-as e ponho-me nostálgico - como quando dormi três noites no Palmarejo, na cidade da Praia, em Cabo Verde. O Palmarejo é uma zona residencial de classe média-alta, onde moram burgueses e altos quadros do Estado, mas, quando descia com o fotógrafo Adriano Miranda para tomar o pequeno-almoço na minúscula esplanada da padaria que havia no prédio onde estávamos alojados, passavam vacas circulando no empedrado da rua e era bonito estar ali e vê-las obrigando os carros a desviarem-se. Percebi que alguns cabo-verdianos não gostavam de ter os lentos bovinos circulando por ali; que se envergonhavam por mostrar cena tão pouco moderna na capital do país. Mas, vendo passar aquelas vacas ruivas, iguais às do meu tio Idalino, eu fiquei a pensar que aquilo era como estar em casa sem estar em casa; que era como estar em casa noutro tempo que já não é este; e que gostava que ainda houvesse vacas na minha cidade.

Crónica publicada no P2 do Público, no dia 11 de Agosto de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há nova remessa