terça-feira, 3 de novembro de 2009
Cegueira
Aquilo de que me lembrei quando, há dias, li os depoimentos de alguns dos pacientes que cegaram após terem sido tratados a uma doença ocular num hospital de Lisboa (“No domingo, por volta da uma da tarde, perdi completamente a visão. Fiquei assim, como ainda estou agora: cego”) foi do romance Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Bem sei que não há quase nada em comum entre a pandémica e parabólica cegueira branca do livro que Fernando Meirelles adaptou ao cinema e a acidental (e trágica) perda da visão dos utentes do Santa Maria, mas aquela frase, escrita assim, precisa e seca, pareceu-me que podia perfeitamente constar do romance de Saramago – quase gémea, afinal, daquela, “estou cego”, com a qual termina o segundo parágrafo do Ensaio.
Ignorarei, desta vez, a inquietante estranheza que há nisto de a realidade tender a imitar a ficção, mas não tenho como passar ao lado da bizarria de que sou acometido sempre que a literatura encontra forma de se insinuar no meu quotidiano, regendo-o como a um títere desprovido de livre arbítrio. Ainda impressionado pelo episódio que cegou seis pessoas num só dia e que, pareceu-me, simulava quase perfeitamente o início de Ensaio sobre a Cegueira, dei por mim a ler Barroco Tropical, o mais recente romance do angolano José Eduardo Agualusa, narrado precisamente por um escritor cego de um olho, sobre o qual usa uma pala semelhante à dos antigos piratas da perna-de-pau. A dada altura, Bartolomeu Falcato perde também completamente a visão, como mizaru, o macaco japonês que cobre os olhos para não ver (gémeo do que tapa os ouvidos para não ouvir e daquele que tapa a boca para não falar).
Pode argumentar-se, claro, que não há nisto nada de extraordinário e que a cegueira de Falcato, atingido pelo estilhaço de uma mina, não pode ser comparada à do médico do livro de José Saramago ou à de Walter Lago Bom, o cozinheiro que o misterioso frasco de Avastin deixou sem visão. Mas Walter Lago Bom pareceu-me, de repente, um nome particularmente adequado para uma personagem de um romance de Agualusa; que podia até ser esse o verdadeiro nome de Rato Mickey, o antigo sapador António Taborda, que, em Barroco Tropical, perde os dois olhos e a face na acidental explosão da mina que só parcialmente atingiu Falcato e que, desde o Carnaval seguinte, usa uma máscara da Disney com a qual sobressalta e arrepia os estrangeiros.
Devia, antes, concentrar-me na personagem da cantora Kianda, essa mulher tão fácil de amar (“Decifra-me ou devoro-te”, promete a Falcato), mas estou outra vez enredado nestas confusas coincidências e, talvez por isso, penso em Rato Mickey, em Walter Lago Bom, no médico de Saramago, em Bartolomeu Falcato e nas muitas formas de alguém contrair a cegueira para não ver o mundo tão claramente como o via a mulher do médico. Pondero nisto e ocorre-me ainda essa espécie de vertiginosa cegueira que é beijar alguém com os olhos fechados, longamente e sem pressa, como se não houvesse mais mundo lá fora e tudo, afinal, se pudesse resumir a isto. E é bom. É muita boa esta cegueira.
Crónica publicada no P2 do Público, no dia 28 de Julho de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há nova remessa. Estão avisados. Ser-me-ia agradável poder manter este trabalho.