segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Praia dos Ingleses



A Praia dos Ingleses não tem quase nada que a recomende: é um areal curto limitado por duas aflorações rochosas e encaixado entre o mar frio e turbulento do Norte e o ruído do trânsito da marginal do Porto. Mas o nome tem uma certa ressonância romântica, como uma pátina invisível.

Uma vez que não se encontram lá, agora, ingleses nenhuns, suponho que a toponímia do lugar se deva ao facto de o areal ter sido utilizado, noutros tempos, pela burguesa colónia britânica instalada no Porto para o comércio de vinhos. Imagino-os saídos directamente de Uma Família Inglesa, o romance de Júlio Dinis, eles molhando-se até aos tornozelos metidos em fatos de banho de corpo inteiro, às riscas horizontais, os bigodes retorcidos e praticando algum sport, e elas com vestidos vaporosos e sombrinhas, relativamente parecidas com Ann Rhys-More, a personagem que a actriz Maria João Bastos desempenha na série televisiva Equador, excepto pelo facto de serem, as inglesas, efectivamente loiras e menos afoitas em tirar a roupa para fazerem amor na rebentação das ondas.

A Praia dos Ingleses tem também uma esplanada tipo deck, suspensa em pilares sobre um rochedo aonde as ondas vêm rebentar com grande estrépito nos dias em que o mar está bravo. Gosto de me sentar ali ao fim da tarde e de render homenagem aos velhos espíritos do lugar: acendo uma cigarrilha, peço um gin-tonic (apenas potável) e fico a ler romances e a devanear vagamente, observando o lento trânsito das nuvens sopradas pela nortada da Foz.

A partir da esplanada pode igualmente observar-se um grupo de mulheres maduras e um pouco obesas, que aproveitam cada tarde de sol para ficarem a tisnar a pele encostadas ao muro alto que serve de suporte à Rua do Coronel Raul Peres. Estão sempre lá (embora tenham menos graça no Verão), bronzeando-se quase integralmente, com os seios fartos (e um pouco flácidos) expostos à ventania.

Gosto daquelas mulheres. Deixam-se estar deitadas na areia, conversando despreocupadamente sobre assuntos do quotidiano, e há nos seus corpos uma sensualidade cansada, algo paquidérmica, misto de pose pouco estudada e puro abandono aos prazeres do sol. Quando tenho o espírito inclinado para elucubrações mais elaboradas, acho as banhistas da Praia dos Ingleses semelhantes às pequenas estátuas das Vénus antigas e férteis. Outras vezes parecem compor quadros vivos de certas pinturas do renascimento, boticellianas, ou, ainda, estarem ali fazendo pose para uma imaginária pintura de Fernando Botero. Mas, se penso bem no assunto, as banhistas assemelham-se realmente, isso sim, às quatro toscas baigneuses que Picasso desenhou em 1920. Melhor ainda: são exactamente como um quimérico quadro que juntasse a compleição física das baigneuses e o seu cenário com o olhar melancólico e a pose das célebres Demoiselles d’Avignon, menos bicudas, e com certa languidez no olhar.

Acresce que este ano, segundo parece, a Praia dos Ingleses vai ter uma bandeira azul – azul como um dos períodos de Picasso.

Crónica publicada no P2 do Público, no dia 2 de Junho de 2009