domingo, 7 de outubro de 2012

Um minuto parado no meio do movimento


Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 30 de Setembro


Pode olhar-se para uma gare ferroviária, como para um aeroporto ou para um terminal de autocarros, e ver aí um local de passagem e de cruzamento. Há os que partem e os que chegam, e também os que esperam por quem vem e os que aguardam por outra coisa qualquer, mas sempre fugazes, como pontos de uma geometria que imediatamente se desfaz e dissipa. Há, na imagem assim concebida, movimento, agitação, vectores, linhas imaginárias entrechocando-se e um pouco do caos aleatório que ordena o comportamento dos humanos que frequentam um local de trânsito como a portuense Estação de São Bento. Dependendo, porém, do modo de olhar, e do tempo que o olhar se demore, podem descortinar-se também a imobilidade e a apatia que há no bulício aparente.

Tome-se, por exemplo, um minuto qualquer num dos velhos relógios que persistem aparafusados nas grandes colunas de ferro forjado que sustentam a estrutura da velha gare – um minuto que não durasse mais do que isso, mas que permitisse circular invisivelmente entre o grande átrio e as plataformas de embarque, e ver tudo, todos os pormenores e todas as pessoas, o comboio amarelo à espera de ordem para entrar no escuro túnel D. Carlos I e as pessoas que, lá dentro, olham pelas janelas, absortas, e aguardam que a vida volte a animar-se. Tudo parado: a mulher gorda que vende pilhas e torrões do lado de fora, sentada ao sol, os cosméticos, carteiras e óculos de sol que ninguém compra, os souvenir que não se vendem, a sombria sala de espera e as pessoas que nela aguardam ou descansam, os utentes paradoxalmente imóveis diante da Loja da Mobilidade, sentados à espera de vez. Parados ainda os mostradores das partidas e das chegadas, as pessoas diante deles, o movimento no quiosque dos doces regionais e na loja de bordados manuais, e o dedo que o guarda dos sanitários meteu no nariz enquanto espera que alguém pague 50 cêntimos para ir “fazer as necessidades”.

No grande átrio, sombrio e fresco, os turistas detêm-se e apontam as máquinas fotográficas para os monumentais, soberbos painéis de azulejos das paredes: Egas Moniz apresentando-se ao rei de Leão, o torneio medieval dos Arcos de Valdevez, a entrada de D. João I no Porto para casar com Filipa de Lencastre, o Infante D. Henrique pelejando para conquistar Ceuta, as cenas pastoris, as azenhas e os bucólicos rabelos no Douro, tudo imobilizado num tempo distante que os instantâneos dos estrangeiros congelam uma vez e mais outra, espécie de hipérbole absoluta da ausência de mudança, da falta de alteração. Num canto, dentro de um aquário de vidro, uma miniatura de uma locomotiva a vapor de 1940 promete mover as engrenagens por uma moeda de um euro – mas ninguém se aproxima.

Numa loja expõem-se livros antigos, edições que não circularam no seu tempo e menos ainda se vendem agora que o país está comatoso, paralisado e à espera. Por cinco euros se podem comprar os velhos sermões do padre António Vieira, actuais enquanto houver terra corrupta como a nossa e ela não se deixar salgar. “Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças” estais indicando que aquele minuto transcorreu e já o comboio amarelo se anima e vai a caminho do túnel escuro. Daqui não se lhe vê o fundo e, se nele luz há, são apenas semáforos de circulação ferroviária.