Não fui ontem capaz de escrever algo que prestasse sobre a morte do Vicente Jorge Silva. É provável, aliás, que o texto que agora inicio não seja também capaz de lhe fazer justiça. Mas sinto que devo tentar fazê-lo, quanto mais não seja porque o Vicente me proporcionou algumas das melhores lições, e dos melhores exemplos, de que podia ter beneficiado enquanto jornalista e cidadão.
Não fui amigo do Vicente. Ele foi apenas o meu primeiro director e a força motriz — irrequieta, travessa e genial — de um projecto jornalístico ímpar, que tive a sorte de poder integrar quase desde a fundação, auxiliado apenas pelas insensatas quimeras adolescentes dos meus 18 anos. O idealismo, a ilusão e o rigor que presidiram àqueles primeiros anos do Público foram, por isso, a melhor universidade que podia ter tido e nunca me esqueci da manhã de sábado em que o Vicente resumiu o exercício do jornalismo de qualidade, de referência, à amável tirania do bom senso e do bom gosto.
É evidente que traí inúmeras vezes a melhor lição do Vicente. Continuo a traí-la frequentemente por falta de ponderação, ignorância ou excesso de entusiasmo. Mas quase sempre sou capaz, depois, de perceber e reconhecer o meu erro e de procurar emendá-lo na medida do possível, mantendo vivo o espírito do jornal que teimava em publicar uma secção permanente dedicada a assumir e corrigir os lapsos e falhas em que diariamente incorríamos.
O Público com que o Vicente sonhou (com o José Queirós, o Joaquim Fidalgo, o Nuno Pacheco, o Torcato Sepúlveda e tantos outros) fracassou estrepitosamente. O falhanço do projecto deve-se menos, porém, ao advento da internet e das redes sociais do que ao facto de o jornal em que tenho o orgulho de ter trabalhado, e no qual me fiz homem, ter sido concebido para um país educado, exigente, culto, sério e cosmopolita — um país, enfim, que não existia em 1990 ou em 2000, e que apenas se tem aviltado mais e mais. Estamos hoje mais ignorantes, mais superficiais e mais parolos, mais torpes, entregues a misticismos pós-modernos e às ditaduras da aparência, da empáfia, da manipulação e do oportunismo; destituídos, enfim, do bom senso e do bom gosto, da exigência e da coerência que podiam ter sido o maior legado do Vicente Jorge Silva a Portugal (e que este país tragicamente desperdiçou).