segunda-feira, 21 de março de 2011

Patos de borracha*



Enquanto o fim-de-semana transcorria, despertei sobressaltado, entre uma sesta e outra, pelo anúncio da descoberta de novos indícios da existência de vida extraterrestre. Ainda mal refeito dessa maravilha, li a notícia sobre o possível achamento, nos Açores, de túmulos com dois mil anos ou mais. A confirmarem-se as hipóteses agora em cogitação, poderão ter sido ali enterrados os corpos de uns quantos gregos ou cartagineses que chegaram às ilhas muito antes de Diogo de Silves e Diogo de Teive.

Pode imaginar-se, pois, uma galé fenícia descobrindo a Terceira e, depois, o Corvo, deixando para trás alguns colonos que tenham acabado por morrer aos poucos sem que mais ninguém por lá passasse; ou que um trirreme tenha naufragado perto do arquipélago e os sobreviventes, agarrados aos destroços, acabassem por andar à deriva até que as correntes marítimas os tenham depositado nas ilhas – como aconteceu com os 28.800 brinquedos de borracha que há quase vinte anos caíram de um navio mercante que navegava no Pacífico e têm, desde então, percorrido os mares do mundo, dando ocasionalmente à costa nas mais desencontradas praias, da Escócia ao Hawai.

Há alguma coisa de muito poético na história dos patos de borracha amarelos que o jornalista norte-americano Donovan Hohn conta no livro Moby-Duck. Produzidos numa fábrica chinesa para irem distrair os banhos infantis em banheiras do mundo todo, acabaram por viver uma autêntica saga marítima, navegando ao sabor das ondas. A viagem que fizeram serviu para aprofundar estudos sobre as correntes oceânicas e inspirou um filme publicitário de uma marca de automóveis, levando Hohn a seguir-lhes o rasto durante cinco anos. Chegou a encontrar um dos brinquedos, um castor já descolorido pela acção do mar, o qual seria simples lixo se não tivesse atrás de si uma história que valia a pena contar: a narrativa imaginada de um pequeno pato de borracha, amarelo e solitário, que desafia o mar imenso, tão indefeso e indómito como um remador das galés fenícias.

Quando apanhou o castor numa praia do Alaska, Hohn há-de ter sentido algo semelhante ao fascínio da descoberta que acometeu o arqueólogo Nuno Ribeiro diante das necrópoles açorianas, ou ao assombro que sentiu o cientista da NASA que garante ter encontrado minúsculas bactérias fossilizadas em três meteoritos, as quais testemunharão a existência de vida fora da Terra. Há, nos três casos, a subtil magia da serendipidade maquinando para que, a partir de um indício insignificante, fosse posta em marcha a capacidade humana para imaginar, relacionar conhecimentos e enternecer-se com o extraordinário poder do acaso.

Se não for estulto meditar nisto entre duas sestas, talvez se acabe concluindo que não somos mais, cada um do nós, do que frágeis patos de borracha navegando na larga e incerta correnteza dos dias. Erguemo-nos da cama, trabalhamos, comemos, dormimos e asseguramo-nos de que os nossos filhos crescem saudáveis. Só daqui a muito tempo, porém, há-de ser inventada a narrativa que dê sentido a tudo isto.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 8 de Março de 2011