sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Um intrigador

Julgo que o homem se instala na esquina logo depois que o dia nasce. Quando por lá passo, tem já armado o cenário com todas as suas traquitanas, entre as quais uma vassoura antiga, uma cana de pesca em estado de indigência, um livro velho, uma cadeira desdobrável, daquelas dos piqueniques de antigamente, e uma espécie de poleiro azul, no qual dispõe umas estatuetas de madeira que se assemelham a esculturas tribais. Ele, o homem, tem um aspecto setentrional e um bigode arrebitado nas pontas; usa calças curtas, um chapelinho pequeno, algo esbeiçado, e um casaco com remendos coloridos; move-se, enquanto espera, com gestos lentos, cuidadosos, que também usa para ajustar milimetricamente a posição da sua cadeira desdobrável no vasto teatro do mundo.

Não sei, bem-entendido, que espectáculo ali se arma depois que os turistas e os curiosos chegam à Baixa, mas tenho a sensação de que as geringonças do homem do bigode retorcido hão-de servir para encenar qualquer espantoso assombro que talvez não se entenda bem. Talvez, olhando, não se veja nada e o artista ali esteja apenas com o intuito de intrigar quem passa. Imagino, pois, que seja um intrigador profissional, um pasmador judicioso e dedicado a provocar a estranheza do mundo. Ou talvez seja apenas um mendigo festivo, um pedinte sonhador que, conforme escreveu Manuel Vilas num texto antigo, acaba convertendo-se em poeta, ou convertendo-se ele mesmo num poema, num dos inutensílios de Manoel de Barros.

Nunca fui ver o intrigador depois da hora a que talvez comece o seu prodigioso expediente. Receio constatar que é só um saltimbanco comum e que se rebaixa a produzir alguma habilidade de feira ou a macaquear gestos que o resto do mundo seja capaz de entender. Prefiro imaginar que é um louco alheio a tudo o que é razoável e perverso, a toda a trivialidade e ao tolo quotidiano racional dos homens banais.