terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Apertar parafusos

O óbvio ululante, conforme a designação cunhada pelo muitíssimo recomendável Nelson Rodrigues, surge, por vezes, onde menos se espera. Por exemplo: enquanto se acaba de livrar os ossos de um ex-frango da carne esbraseada que outrora foi viva. 

Terminava, pois, o meu prândio de hoje quando uma conversa telefónica atraiu a minha desgovernada atenção. Um comensal, solitário como eu, reclamava ao telemóvel da falta de «parafusos 6/45», entre outras ferragens de que a sua actividade carece e que, pelos vistos, não estão garantidas pelo respectivo serviço de aprovisionamento. Sucede que, pelo andar da conversa, percebi que o meu involuntário companheiro de refeição não era um serralheiro, tão-pouco um mecânico de automóveis ou um montador de perfis de alumínio, mas sim um distinto cirurgião que, desde o último abastecimento, já tinha executado seis ou sete cirurgias e que, naquele momento, caso necessitasse de realizar uma intervenção urgente, ninguém nos livra desse refrigério, se veria impossibilitado de atarrachar tudo aquilo que carece de ser atarrachado por falta dos tais «parafusos 6/45», pelos vistos muito usados nas manutenções programadas e inesperadas dos autómatos humanos.

Entregue, por tudo isto, a graves e indigestas ruminações, descobri na mui prestável web uma frase do esoterista russo Pyotr Demianovich Ouspenskii (1878-1947), a qual me pareceu bastante adequada a esta circunstância tecnológica. Diz que «o homem é uma máquina», embora «muito peculiar». «Nas circunstâncias adequadas - acrescenta -, pode ter consciência de que é uma máquina e compreender que é capaz de encontrar uma forma de deixar de o ser». 

Suponho que é isto, afinal, o que nos distingue do frango que acabei de almoçar, ao qual nunca ocorreu consertar-se recorrendo a «parafusos 6/45». Mas nem todos os homens, pensei depois, dispõem das condições que lhes permitam perceber em que churrasco se acham metidos. E a outros também faltam parafusos.