Não durmo, nem espero dormir./Nem na morte espero dormir.//Espera-me uma insónia da largura dos astros,/E um bocejo inútil do comprimento do mundo, escreveu o heterónimo Álvaro de Campos no poema a que chamou Insónia.
Pode não parecer, mas trata-se de um assunto seriíssimo.
Companheira de escritores e poetas, cúmplice de inúmeros profissionais que não
podem descansar quando e enquanto os outros dormem, a vigília nocturna conquistou
estatuto de objeto científico e não faltam já por aí clínicas do sono,
institutos do sono ou especializações em biologia do sono. No Brasil, por
exemplo, o jornal A Folha de São Paulo dá hoje voz, na sua edição electrónica, a
Mónica Andersen, directora do Instituto do Sono, a qual alerta para os riscos da falta de descanso. Segundo a cientista, o próprio facto de necessitarmos de
que um despertador nos acorde constitui já indício de falta de descanso ou
de «descanso insuficiente».
O leitor incauto encolherá neste ponto os ombros, decerto
aborrecido por um texto que não lhe desperta qualquer interesse e que
provavelmente até o entedia. Boceja? É, talvez, porque tem andado a dormir na
forma, distraído e desatento às reais implicações da insónia e do sono
insatisfatório.
Também hoje n’ A Folha de São Paulo vem, aliás, notícia de um caso
de violência doméstica que ilustra bem o fulcro desta questão: acusado de
espancar a mulher, um réu foi considerado inimputável pelo tribunal, que o declarou vítima de «distúrbio no sono». Conversa para boi dormir, como dizem por lá. A
vítima deste pesadelo vai recorrer, mas já ninguém a livra das consequências
físicas e morais do suposto padecimento do putativo insone (que talvez seja só um refinado filho
da puta).
Já Álvaro de Campos, de certa forma, explicara naquele poema
o artifício legal que permitiu a declaração de inimputabilidade: Ah, o ópio de
ser outra pessoa qualquer! E acrescenta: A Humanidade esquece, sim, a
Humanidade esquece,/Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Por falta de sono ou excesso dele, está a humanidade como sonâmbula. Ou comatosa, já que o adormecimento parece decorrer de uma doença social que, devagar, nos apaga o discernimento e até o mais prosaico pensamento.
Se ao menos houvesse algures um despertador que nos pudesse arrancar a este narcótico torpor do comprimento do mundo.