Não faltam por aí belíssimos e delicados textos elogiando o subtil poder dos livros. Não será o caso deste, que se limitará a espreitar, mirone, o volume que uma mocinha ontem lia, de pé, no autocarro da seis da tarde (ou perto disso). Dedicava-se a jovem adulta, como agora se diz, ao estudo, e passo a citar, da Evisceração dos órgãos da cavidade abdominal e pélvica, literatura que, devo confessar, possui o raro poder de simultaneamente me impressionar e arrepiar.
Ponderava ainda, durante as tripas do almoço de hoje, sobre a autoridade literária de alguém que se ache munido de um manual de cirurgia e de um objeto cortante, quando me ocorreu aproveitar a tepidez zenital para caminhar até à esquina e, por fim, desafiar a gravidade e subir as escadas que conduzem ao primeiro andar onde se situa, há décadas, a livraria Unicepe. Envergonhado por nunca lá haver entrado, apreciava ainda o perfume que resulta do acúmulo de papéis antigos e novos, o ar honesto de livraria de outros tempos, quando um dos presentes informou os restantes flâneurs da morte do escritor Arsénio Mota.
Não conheci Arsénio Mota, embora tenhamos sido ambos autores contemporâneos da extinta editora Campo das Letras. À hora a que escrevo este texto, nenhum site informativo confirmou ainda, aliás, o seu falecimento, pelo que espero não estar a incorrer numa daquelas situações em que a notícia de uma determinada morte resulta francamente exagerada. Refiro-a apenas para constatar que, morto ou vivo, alguns dos livros daquele escritor continuam, ao contrário dos meus, ainda à venda na Unicepe, onde, àquela hora, pelos menos duas pessoas sabiam quem foi e o que fez Arsénio Mota. Talvez seja isto a imortalidade. Mas não é para todos.