quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Só para fumadores (e escritores de contos)



Na semana passada, durante o festival de literaturas de expressão ibérica Correntes d'Escritas, constatei que continua a ser muito fácil encontrar alguém com quem conversar: basta sair para fumar. Fosse qual fosse a temperatura exterior, estivesse a chover ou não, a tribo gregária dos fumadores sempre estava reunida em algum dos espaços onde se podia deitar baforadas para o ar, conversando-se aí animadamente e sobre os mais diversos assuntos.

Com os riscos do tabaco associados às maleitas de uma potencial pneumonia — numa das noites a temperatura baixou para perto dos zero graus —, os fumadores revelam agora ser gente bastante heróica. Podemos não chegar a fazer uma revolução como deve ser, mas, ao menos, desfrutamos da volúpia da transgressão, devidamente celebrada quando o Manuel Rui chegou de Cuba e fez várias rondas distribuindo Cohibas entre a multidão dos pecadores.

Numa das deslocações, o fotógrafo Alfredo Cunha contou-me, por exemplo, como o Manuel António Pina sempre lhe pedia que o fotografasse a fumar, desafiando, deste modo, a ditadura do politicamente correcto e da hipocrisia dominante. Estar a fumar nas fotografias, suponho, constituía uma espécie de declaração de interesses e um brado de liberdade individual. A liberdade para pensar pelo próprio toutiço era, de resto, uma das mais importantes características do amável e genial escritor, e homem ímpar, que também na Póvoa foi recordado.

Nada disto, porém, me ocorreria se não tivesse ontem começado a ler A Palavra do Mudo, de Julio Ramón Ribeyro, em cujo primeiro conto, Só para fumadores, se celebra a trágica, jubilosa, maníaca e apaixonada relação de um homem com os seus cigarros. Trata-se, ainda por cima, de um conto incluído num livro de contos publicado por uma pequena editora do Porto, a Ahab, assim se celebrando várias liberdades ao mesmo tempo: a de fumar, a de escrever contos, a de publicá-los num tempo em que "não se vendem" e a de continuar a editar livros fora dos grandes grupos editoriais e da macrocefalia de Lisboa. Uma festa, portanto.