segunda-feira, 30 de maio de 2011

O Prémio Camões*


A primeira coisa que o meu filho disse quando chegou a casa na sexta-feira foi: “Com que então Prémio Camões”. Referia-se à atribuição do mais importante galardão literário da Língua Portuguesa ao Manuel António Pina, cujas crónicas no Jornal de Notícias o Afonso lê diariamente. Não sei ao certo como foi que adquiriu este tão saudável e instrutivo hábito, nem quando começou a praticá-lo quotidianamente, mas compreendo que tenha recebido a notícia do prémio como uma coisa que, de algum modo, também lhe diz respeito. Se ficamos felizes quando o nosso clube ganha o campeonato de futebol, também podemos e devemos festejar quando um dos nossos escritores triunfa numa grande competição literária. Talvez devêssemos, aliás, celebrar a conquista do Manuel António Pina na Baixa da cidade, com cachecóis e buzinas, dando sequência, já agora, à festa pela vitória do José Saramago no Nobel da Literatura e à comemoração dos triunfos do Eduardo Souto Moura e do Siza Vieira nos Pritzker da arquitectura.

Quando escrevi que não sei ao certo como foi que o Afonso se tornou leitor das notáveis crónicas do Manuel António Pina, disse apenas meia verdade. Sei que, ao contrário daquilo que se poderá supor pelos quinze anos que tem, ele não leu os livros que o Pina escreveu para os mais novos. Começou, isso sim, a consumir as crónicas depois de ter lido Os Papéis de K., um pequeno e belo livro que é também uma rara incursão do escritor e poeta na ficção novelística. Conquistado, o Afonso aconselhou o livro a outros amigos, os quais, suponho, terão passado a palavra adiante. Na semana passada, devem todos ter gostado de saber que o Pina ganhou o Camões. No próximo ano, talvez queiram conhecer a obra daquele que vier a conquistar o prémio e ganhem, assim, um novo escritor.

Os galardões literários, porém, nunca chegam a distinguir todos os escritores que vale a pena ler. Por isso, da próxima vez que o Afonso me pedir um livro para ler, vou confiar-lhe Os Papéis do Inglês, do angolano Ruy Duarte de Carvalho. É um pequeno romance de feição conradiana, o qual, ainda por cima, tem vários pontos em comum com Os Papéis de K.. Têm espoletas narrativas semelhantes – manuscritos e cartas deixados por alguém do passado –, sendo ambos aquilo a que alguém designou como “ficções de ficções de ficções”. Acresce que o Ruy Duarte de Carvalho era um praticante absolutamente ímpar da nossa língua, o qual também devia ter ganho, alguma vez, o Prémio Camões, mas que morreu no ano passado sem que se tivesse feito essa justiça a uma obra notável e vasta, que vai da sociologia à poesia, passando pela ficção.

Faltará, depois, que o Afonso leia ainda mais um livro da mesma família destes dois, Nove Noites, do brasileiro Bernardo Carvalho, no qual, outra vez, uns quantos papéis do passado motivam o mergulho do narrador no coração das trevas do território hostil do Xingu, e, depois, numa espiral de demência e morte. Mas não há pressa. O Bernardo Carvalho ainda vai muito a tempo de ganhar o Camões.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 17 de Maio de 2011