terça-feira, 15 de março de 2011

A rapariga a quem faltava um dente

Na página 109 de Dublinesca, Samuel Riba, o editor, telefona a um amigo escritor, Javier, e pergunta-lhe pelo momento em que se sentiu o centro do mundo. Javier evoca, então, o seu primeiro amor, o modo como ela estava a descascar batatas-doces no momento em que a viu, e depois acrescenta um desconcertante "recordo que lhe faltava um dente". Ocorre-me imediatamente que, um dia, inventei uma personagem à qual também faltava um dente, mais precisamente um dente da frente; uma rapariga cabo-verdiana pela qual o narrador desse livro se apaixona. Semanas depois de tê-la inventado, meti conversa, numa noite cálida do Mindelo, com uma moça a quem fiz sorrir com uma patetice qualquer que hei-de ter dito, e, então, vi que lhe faltava também a ela um dente, precisamente o mesmo dente da frente que eu tinha imaginado que faltaria à rapariga do romance. Lembro-me de me ter sentido o centro das coisas de uma forma muito estranha, como se aquilo a que às vezes se chama o mundo tivesse decidido pôr-se de acordo e urdir de forma a que as minhas ficções adquirissem uma certa realidade.