terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Maravilha de mortos

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 10 de Novembro de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há mais)



Estou avisado pelo Levítico (“E aquele que blasfemar o nome do Senhor, certamente morrerá”), mas, ainda assim, arrisco, pois, exceptuando o José Saramago, quase ninguém, blasfemo ou não, escapa, tarde ou cedo, à sinistra ceifeira.

Gosto de defuntos e, de entre eles, gosto especialmente de defuntos capazes de alguma acção espectacular – a menos que queiram ser deus e impor regras tão parvas como “não cobiçarás a mulher do próximo”. Ou por outra: sou capaz de apreciar um morto que tenha a pretensão de ser deus, desde que deus seja como o narrador do romance A Morte de um Herói, de Frank Ronan, e, portanto, capaz de declarar coisas tão humildes como “Perdi-o e não posso trazê-lo de volta. Sou apenas Deus e não fui eu quem fez as regras”.

De entre todos os mortos hiperactivos que sou capaz de recordar, tenho um carinho particular por Brás Cubas, o personagem de Machado de Assis, o qual se dispôs a narrar a própria vida a partir da morte, escrevendo as suas memórias póstumas. É um romance admirável, sobretudo se tivermos em consideração que é obra de um cadáver que, logo de entrada, deixa tudo muito claro: “Expiei às duas da tarde de uma sexta-feira do mês de Agosto de 1869, na minha chácara de Catumbi”. Não espanta, portanto, que, tendo em conta a agilidade literária do morto, Santana Lopes se tenha confundido um pouco, acabando, há uns anos, por convidar o brasileiro Machado de Assis para uma cerimónia na Câmara de Lisboa.

(em tempo: referi, numa crónica anterior, a frase “decifra-me ou devoro-te”, proferida por uma personagem de um romance de José Eduardo Agualusa, mas cometi, então, a injustiça de não a tributar também a Machado de Assis e, mais concretamente, à ideia que permitiu a Brás Cubas criar o célebre emplastro; assim se demonstra que não só os mortos são capazes de actividades extracurriculares, como também as suas frases têm o poder de ressuscitar em romances alheios)

Os supracitados que me perdoem, porém, mas nem deus nem Brás Cubas alcançaram um efeito tão espectacular quanto Ademir Jorge Gonçalves, o Tufão, um pedreiro brasileiro de 59 anos que aproveitou o dia de finados, na semana passada, para comparecer no seu próprio funeral, imitando, a seu modo, Nelson Rodrigues e Mark Twain. Tufão tinha morrido num acidente de viação, o desdentado corpo havia sido reconhecido pela própria mãe e metido num caixão, mas, também neste caso, a notícia do seu falecimento era bastante exagerada. O próprio Ademir tratou de ir desfazer o equívoco – e gosto de imaginar que foi caminhando devagar, respirando os eflúvios da Primavera em Santo Antônio de Platina, e assobiando com ironia uma cantiguinha da Xuxa. “Se eu disser morto tem que abaixar./ Se eu disser vivo tem que levantar”.

No caso de Tufão, as causas da insuspeitada ressurreição são já perfeitamente conhecidas: o pedreiro não compareceu ao acidente que o vitimou porque se deixou ficar num bar a beber cachaça (provavelmente uma daquelas cachaças capazes de fazer levantar um morto). Depois não me venham dizer que o álcool prejudica a saúde.