Há, por exemplo, um homem que muda de pele todos os dias. Ou o subtil relâmpago da frase: "Mas não sei como proceder diante do chefe e reúno meus dedos numa flor de súplica sobre a mesa".
Regressei esta noite, por involuntária sugestão de uma amiga que queria recomprar o livro que ofereceu, ao Pequeno tratado sobre as ilusões do Paulinho Assunção, publicado pela Campo das Letras em 2003 (havia conquistado o Prémio Guimarães Rosa, na categoria Contos, em 1998, sem ter ainda encontrado um editor) — e voltei a experimentar o elementar fascínio das suas histórias muito breves e encantatórias. Não preciso de dizer, creio, que o livro não voltou a ser publicado. Já nenhum editor se interessa por um livro que se lê entre duas cigarrilhas e procura praticar a literatura sem ceder a nenhum dos paupérrimos sucedâneos que agora se vendem à mesma velocidade dos pães quentes.
O Pequeno tratado sobre as ilusões é hoje impublicável, como o Montedidio do Erri de Luca. Se Borges não se tivesse erguido à condição de Borges, tampouco alguém hoje leria (ou publicaria) O Livro de Areia, decerto desprezado entre capas coloridas de desgaste rápido. O público quer a última bolacha do pacote das redes sociais e não abre mão desse cintilante esterco, de preferência com nome camone e enredo de telenovela de quinta categoria.
Testemunho de uma época transacta e esquecida que o tempo obliterou, o Pequeno tratado sobre as ilusões continua presente na memória de quem outrora o leu e a ele pode ainda voltar. Será um livro de areia que o vento dissipa devagar, parte da poeira cósmica a que todos, cedo ou tarde, regressaremos. Mas ali, no círculo infinito das estrelas, continuará a soar a perene poesia de uma frase: "Quando a encontrei, eu era ainda um homem com asas".
Que continue a voar quem pode.