Os mendrugos? Decerto os vi, porém esquivos, entre as pétalas douradas dos gingkos de Dezembro. Voavam depressa, em repentes, e piavam às vezes, embora não sejam pássaros. Julgo que são mestres do disfarce e do ardil, e que se comportam à semelhança das aves com o fito de que lhes atiremos mancheias de alpista. Também é possível que procurem confundir-se com as triviais galinhas da capoeira e ali entrem à cata de alguma talisca de pão duro (talvez venha daí a sua designação vulgar).
Às vezes os mendrugos também ronronam como os gatos, mas imitam-nos mal. Julgo que são felinos com defeito - ariscos, mas humildes e pouco ágeis. Ou seja: são gatos sem espírito de gato. Não me parece de todo descabida, por isso, a teoria, predilecta de certos taxonomistas, segundo a qual os mendrugos representam uma derivação dos felinos domésticos. De acordo com esta hipótese, em algum momento os bichanos, não se contentando já em ser objecto e musa da lira alheia, teriam pretendido escrever a própria poesia e nisto fracassaram espectacularmente, tornando-se apenas melancólicos e trágicos na patética exibição da sua angústia, no que se assemelham aos musaranhos.
Se é certo? Ignoro. Apesar do meu cuidado, nunca pude ver um mendrugo de corpo inteiro. Conheço-os apenas de enxergar breves e incompletas fracções, rápidas como relâmpagos ou olhos de moça. Tenho quase certeza de que voam, mesmo se não vi as suas asas. Conheço-lhes o corisco súbito, o modo incerto e trôpego de pisar as folhas secas, cujo crepitar distingo perfeitamente em qualquer selva, e sei que são ardilosos ao ponto de conhecerem o melhor momento de visitar as armadilhas onde deixo o meu engodo de migalhas e imaginação. Comem o isco, mas não se deixam apanhar jamais.