Aqui entre nós, que mais ninguém me lê, confesso a minha perplexidade... Ou melhor: vivo permanentemente perplexo. Há-de ter sido este um dos motivos do meu longo silêncio -- a sensação de que estou a pensar contra uma parede de betão armado com quinze metros de espessura. Mas que importa isso quando o céu já nos está a cair na cabeça, conforme temiam os gauleses da aldeia do Ásterix?
Objeto de uma ordem de detenção por parte do Tribunal Penal Internacional, Benjamin Netanyahu reagiu previsivelmente. Diz que se trata de um acto anti-semita e contrário ao direito de Israel de se defender de uma agressão. Seria cómico se não fosse trágico e não negasse, já agora, o direito, quase simétrico, de os palestinianos reagirem a uma agressão perpetrada de modo mais ou menos contínuo e sistemático há quase 80 anos.
Se quisermos ir ao limite mesquinho de contabilizar as vítimas daqueles dois direitos análogos, o balanço é criminoso e Netanyahu é responsável por uma parte muito substancial da carnificina. É tão assassino quanto Putin, os khmer vermelhos, Estaline, a elite hutu do Ruanda ou Adolph Hitler, só para referir alguns exemplos mais ou menos conhecidos. Ver Netanyahu queixar-se de anti-semitismo é o equivalente patético a imaginar Himmler alegando ser vítima de anti-catolicismo quando foi detido pelos ingleses em 1945.
Igualmente muito significativa foi a reação do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Defensor de Putin, primeiro entusiasta da eleição de Trump, amigalhaço de Ventura, de Le Pen, de Abascal, de Bolsonaro, de Milei e de quase todos os neofascistas europeus, apareceu para dizer que hoje mesmo convidará Netanyahu a visitar o seu país, garantindo-lhe que a ordem do TPI não será ali cumprida. Mas já não espanta que esta pandilha nem sequer se dê ao trabalho de procurar disfarçar e descaradamente faça tábua rasa da essencial separação de poderes que (devia) caracteriza(r) os estados de direito.
Talvez os tribunais húngaros obedeçam a Orbán, do mesmo modo que os tribunais soviéticos obedeciam a Estaline. É muito possível que Netanyahu possa passear em Budapeste ou Washington como Putin passeia em Pyongyang. A pandilha protege-se, defende-se e prospera, alimentando-se, antes como agora, das suas futuras, indefesas vítimas, que avançam para o patíbulo sorrindo e cantando palavras de ordem, garantindo que a sua nação é grande, a maior de todas pelo menos até que a próxima guerra a encolha.
Mas tudo isto fica só entre nós. Pelo menos até que as paredes voltem a ter ouvidos -- como em Moscovo, como em Budapeste, como em Berlim Leste, como em Buenos Aires e Santiago, como em Lisboa, como em Madrid, como em Pequim, como em Pyongyang, como...