quinta-feira, 29 de junho de 2023

Atravessar portais

 Estareis decerto recordados, e ai de mim que duvidasse, de que procurei Montevideo em Munique, já lá vão sete meses. Chegavam, então, o Inverno e as temperaturas negativas à Baviera. Há coisa de um mês, quando começava a irromper o Verão, atravessei a fronteira para comprar tabaco e ocorreu-me que talvez encontrasse o mais recente livro de Vila-Matas numa pequena livraria de Valencia de Alcantara, que foi efemeramente portuguesa durante alguns anos do século XVII e que leva o título de "mui nobre, antiga e leal vila". Mas o estabelecimento estava fechado para a siesta e tardaria em abrir mais do que eu estava disposto a esperar. Comprei-o só agora, em edição portuguesa (para meu pesar), na cidade que responde pela divisa, quase gémea daquela, de "antiga, mui nobre, sempre leal e invicta". Deste modo também eu, correndo atrás do livro, fui abrindo portas e atravessando umbrais entre distintos lugares, conforme se promete que o livro fará. E agora vou-me refastelar à sombra e deixar que Vila-Matas arrombe as portas de comunicação entre os dois ou três neurónios que ainda me sobejam, bocejando de volúpia e aborrecimento. Talvez, assim alimentado, ainda seja capaz de voltar a "fazer-me passar por escritor", conforme escreve o catalão, talvez sobre si mesmo ou sobre o seu personagem em Montevideo, o que frequentemente vem a ser a mesma coisa.