quinta-feira, 11 de maio de 2023

Eu passarinho


Pela manhã, quando é ainda fresco "o lavado linho dos dias" — conforme escreveu José Pedro Leite num poema do seu mais recente Manual de relentos —, há um melro-preto que regularmente me espera em cima do murete do jardim, piando o seu trinado quase metálico e mostrando-me a quotidiana minhoca cavada na relva húmida. Notei-o por me ter espantado que não fuja até que eu esteja já muito perto e lhe possa murmurar os bons-dias sem que os vizinhos julguem que endoideci; ao ponto de perceber o brilho e as espiras da agónica minhoca que traz enrolada no bico. Há dias em que o não vejo logo, porém, ou que o não avisto de todo. Mas ei-lo que, às vezes, chega ainda voando e poisa ao meu lado, no murete, como esperando que o saúde ou para me saudar ele a mim. E por isso sigo o meu caminho mais ledo, mais indiferente aos que o atravancam e convicto, como no poema de Mário Quintana, que "Eles passarão.../Eu passarinho".