terça-feira, 9 de maio de 2023

A matéria fugaz de alguns sonhos


"Se não formos terrivelmente audazes com os nossos sonhos — escreveu Luis Sepúlveda num texto de 2002 agora publicado no livro Mundo Sepúlveda — e não acreditarmos neles até torná-los realidade, então os nossos sonhos murcham, morrem, e nós com eles".

Também eu, como qualquer um, acalentei os meus sonhos, quase todos insensatos e muito acima das minhas possibilidades, por muito que a sorte e o acaso me tenham permitido concretizar alguns, vê-los transformarem-se em realidades fugazes que o tempo havia de varrer para longe. Demasiado cedo me fiz jornalista, escritor e cidadão consciente dos meus direitos e das minhas responsabilidades, vi pessoas e lugares que não imaginei visitar, fiz coisas com que não tinha sonhado.

Há trinta anos, mais ou menos por esta hora, fui conhecer um nico cabeludo e enrugado de gente que me foi apresentado como sendo a minha filha primogénita. Depois o tempo passou depressa de mais e nasceu também o meu filho homem, que me engendrou um neto, e de todos os meus sonhos eu soube que me cabia, acima de tudo, ser audaz com este e nutri-lo até que crescessem ambos e se fizessem seres humanos e cidadãos de que pudesse orgulhar-me enquanto pai presente e disponível para o que fosse preciso.

Os outros sonhos, bem entendido, dissolveram-se no tempo como o fumo das chaminés depois que o vento lhes dá. Vão murchando e morrendo, e eu com eles, aos poucos. Os meus filhos, feitos matéria e consciência de si, aí estão, porém, para dar fé de que não desperdicei completamente o tempo que já passei à tona do mundo. A Maria Miguel é, a partir de hoje, uma mulher de trinta com quase nada de Balzac e quase tudo o que se pode desejar que uma filha seja. Está de parabéns e eu também, ao menos um pouco, ao menos por ter sido capaz de confirmar que os melhores sonhos, e os mais perenes, são aqueles que nem sequer chegámos a imaginar.