quarta-feira, 15 de março de 2023

Salvar alguma coisa


Na última frase de Os Anos, a mais recente Nobel da literatura, Annie Erneaux, explica esse livro como uma tentativa de "salvar alguma coisa do tempo em que não voltaremos a estar". Trata-se de uma intenção que, ao fim e ao cabo, resume quase tudo: um poema, um postal ilustrado, uma crónica na rádio, uma fotografia no instagram, uma publicação numa rede social ou um post neste blogue — "e já quase ninguém lê blogues", afiança o Afonso, provavelmente perplexo de ver o pai desperdiçar tempo numa actividade tão improfícua para o objectivo de salvar alguma coisa do instante que acabou de transcorrer e não poderá voltar a ser vivido. É muito provável que o Afonso tenha razão e me fosse mais proveitoso dedicar-me ao Tik Tok ou a alguma rede social que agora mesmo esteja a congregar as novas gerações, a despeito de ter a convicção de ser incompetente em viralidades gerais e em qualquer das redes de que particular e ocasionalmente me ocupe. A partir de uma certa idade, porém, tudo o que fazemos é juntar-nos aos hábitos e usos dos mais novos com o intuito de procurar enganar a passagem do tempo, refreá-la para que não se julgue que já somos parte do passado, simultaneamente velhos e burros de todas as coisas do tempo em que ainda estamos.