Algumas palavras irrompem nos interstícios do quotidiano e depois permanecem comigo o dia inteiro, regressando e regressando — por exemplo a palavra balastro, escutada na crónica de hoje do Fernando Alves. "Num chão de balastro, sob um céu de catenárias" é um poema radiofónico que me ficou a retumbar na cabeça como o campanário da igreja de uma aldeia.
Por falar em poemas, guardei na memória a impressão de vários verso de José Pedro Leite no livro Onde Morrem os Barcos; e também aquele poema que diz: "Passei todo o dia cumprindo pequenas tarefas:/cortei as unhas e o coração/arrumei papéis/cozinhei algo de que já me não lembro/li e fumei muito/dei a beber aos pássaros da minha solidão//Senti/como uma pedra/o peso da tua ausência//Mas/falava de pequenas tarefas/cozinhei papéis/arrumei livros de que já me não lembro/até que as unhas se me tornaram pássaros//fumei solidão/e bebi o que me restou do coração".
A fotografia anexa é da esquecida linha ferroviária que vai do Entroncamento a Badajoz, na qual não há catenária alguma, mas onde ainda se escuta o pio dos pássaros e se sente o cheiro do óleo caído no balastro enquanto as automotoras interrompem o silêncio da planície estiolada.