Depois da borrasca, a praia enche-se de restos de madeira que as cheias dos rios e as bravias marés transportaram e depositaram no areal, no sítio onde o oceano se dobra e enrola uma e outra vez. Caminhando à toa para espantar o caruncho, peripatético que eu sei lá, pergunto-me onde cresceram e que vida tiveram as árvores cujos troncos e galhos agora ali estão feitos lenha e lixo; que pássaros pousaram nos seus ramos e se piavam ou gorjeavam; se vicejaram em flores e fruta — coisas, enfim, em que se medita quando se não tem mais em que cogitar.
Trazido ao areal às toneladas, esse resto de pomar e bosque organiza-se também de acordo com a lógica aleatória das ondas e do relevo da costa. Esta tarde notei, porém, que havia nas praias da Foz algumas construções precárias dessa lenha empilhada, formando como toscos abrigos de uma espécie animal que houvesse abandonado os lares à pressa. E li também, logo após, a notícia da mulher de 66 anos que há quatro meses vive com um filho de 44 na praia de Matosinhos, não num daqueles condomínios de estadão construídos à beira-mar, mas numa tenda montada no areal por falta de dinheiro para alugar ao menos "um quartinho".
Considerando o desvario pornográfico do chamado "mercado imobiliário" (essa selva de "investidores" aonde só os mais endinheirados sobrevivem), não custa supor que não tardará muito para que as cabanas de lenha montadas com o lixo que deu à costa acabem acolhendo famílias inteiras de desabrigados, deserdados e humilhados do estado a que isto chegou. Ah, mas talvez um dia a bolha rebente ou os habitantes da praia sejam tantos e tão desesperados que atravessem a avenida marginal para partir tudo o que nela encontrem, cabeças incluídas.