quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

"O que eu preciso é de uma pistola para dar um tiro na cabeça"


Talvez se digam coisas muitos significativas nos transportes públicos alemães. É possível que conversem sobre Filosofia e recitem Hölderlin, ou que profiram grandes e definitivas tiradas que ficariam bem em qualquer  das pretéritas crónicas do autocarro, as quais outrora aqui compuseram uma longa e louca série de textos extravagantes. Mas, como não entendo o que por lá dizem, vejo-me constrangido a considerar que não há autocarros como os do Porto. Talvez, com efeito, já sentisse falta de ouvir os utentes do 200 perorar sobre certas e determinadas evidências científicas, desde logo aquela que demonstra que o clima mudou "desde que começaram a mexer lá em cima". "Sim, na Lua", acrescentou logo outro utente, segundo o qual o satélite natural da Terra "comanda o tempo que faz".

Porventura mais dramática foi a subida a bordo de um bigodudo octogenário na paragem do Planetário. Após uma breve corrida à chuva que o deixou aflito, entrou e sentou-se declarando que "a velhice não tem interesse nenhum", frase que atribuíu, não a Hölderlin, mas a Miguel Torga. Acrescentou outras lamúrias, ao que logo duas senhoras lhe responderam, a fim de o animarem, que o importante é viver um dia de cada vez e que, enfim, se deixasse ir andando. Desolado como um dia de chuva, o homem disse temer que um dia destes, ao acordar, não fosse já capaz de se mexer, ao que ajuntou uma declaração de grande efeito entre o mulherio: "O que eu preciso é de uma pistola para dar um tiro na cabeça".

As mulheres, está bom de ver, acudiram a procurar erguer-lhe o ânimo. A que estava mais próxima até lhe perguntou a idade (87) e logo concluíram que ela era mais nova (82). E então, como tocado por um raio de sol, o rosto do homem iluminou-se com um sorriso: "Ainda tem marido? É viúva?", quis saber. Ela informou que nunca tinha casado e o combalido octogenário manteve o sorriso quase sedutor e, agora, uma conversa menos lastimosa e em voz baixa. Assim foram mais um pedaço, até que a senhora de cabelo de prata teve de sair da viatura. Até à Cordoaria, que eu bem o vi, o homem, outra vez a contas com os seus achaques, as suas solidões, voltou a entristecer e a fixar o olhar nas chuvosas e pardacentas ruas do Porto, outra vez mais sorumbático, se fosse possível, do que esta quarta-feira de Dezembro.