terça-feira, 13 de dezembro de 2022

No Sul faz sempre tanto frio*


Prezados editores, 
É com certo vexame — e muito frio — que finalmente vos faço chegar a crónica dedicada ao Sul, conforme solicitado no pretérito 2 de Agosto. Recordo-me muito bem: a previsão meteorológica para Castelo de Vide antecipava temperaturas próximas dos 40 graus centígrados e eu encontrava-me a aboborar, ao final da manhã, na esplanada diante da serra de São Paulo, coroada pela alba e pitoresca capelinha da Senhora da Penha; o telefone tocou e respondi, quase sem pensar, ao desafio que me fizeram para escrever até 6.000 palavras sobre o Sul. Só depois de desligar a chamada me ocorreu que o Sul é muito relativo. O Porto, onde vivo, é, por exemplo, o Sul de Matosinhos. De igual modo, cogitei, o Algarve, onde estivera 48 horas antes, é o Norte de Marrocos, tal como Puerto Toro, no Sul do Chile, há-de inevitavelmente ser o Norte dos pinguins-imperador das Ilhas Ildefonso. 

Não me comprazendo em executar qualquer tarefa pela metade, empreendi, pois, a viagem necessária, aquela que pudesse transportar-me até ao ponto mais meridional habitado pela espécie humana: a Estação Amundsen-Scott (89° 59’ 51” S 139° 16’ 22”), instalada no Polo Sul do mundo. Aqui estou e é a partir deste deserto de gelo que agora vos escrevo, esperando corresponder cabalmente à exigência geográfica da extravagante solicitação que tiveram a amabilidade de me endereçar. 

Não cometerei, todavia, a imprudência de vos aborrecer, e aos eventuais leitores deste escrito, com a enumeração de detalhes enciclopédicos que qualquer um pode recolher vadiando frivolamente pela internet, onde é agora possível ficar a saber de quase tudo (sem chegar a conhecer praticamente coisa alguma). Limitar-me-ei, por isso, a asseverar que faz sempre muito frio no Sul do mundo e que os dias transcorrem aqui muito docemente, afirmação que constitui, em si mesma, uma pura abstracção: durante seis meses os dias são uma única grande noite, circunstância que de modo algum me contraria e à qual se afeiçoa muitíssimo bem a minha disposição, habitualmente sombria e macambúzia. Cerca-me, pois, uma enorme madrugada que apenas o gelo alumia — o gelo e as incontáveis estrelas do céu, aqui tão distinto daquele que, ainda há poucos dias, contemplei deitado no relvado que bordeja a piscina de um dos meus primos de Castelo de Vide, numa madrugada tão cálida, tão doce, e na própria noite em que decidi deslocar-me ainda mais para o Sul a fim de, contra toda a sensatez, redigir esta crónica. 

Neva neste preciso instante, mas quase nada, apenas o suficiente para que o meridional gelo se renove e o chão pareça ranger sob os meus passos lentos. Acomete-me, por isso, a impressão de que, se aqui vim, foi provavelmente para poder escrever que aqui estou; que neva brandamente e que o gelo range no Polo Sul afinal de modo tão semelhante ao que percebi quando, há menos de dois anos, caminhei sobre a camada branca depositada por um raro nevão nas encostas da Serra de São Paulo, deixando os telhados das casinhas brancas de Castelo de Vide a derreter ao sol, gotejando devagar. Assim mesmo o disse ao soturno físico nuclear argentino que me acolheu na estação científica e que providenciou uma cama estreita onde pudesse deitar-me para descansar entre noite e noite; que me oferece da sua comida enlatada, do seu vinho tinto de Mendoza, e insinua histórias de um outro Sul de cada vez que suspende a observação das sondas e dos aparelhos que vigiam a imensa noite austral. Disse-lhe, enfim, que aqui estou também a fim de investigar e perscrutar o Sul, para analisar o gelo e o seu efeito em mim, o resíduo literário que se vai sedimentando sobre a minha letargia de cada vez que saio do edifício da estação para caminhar em círculos, em espirais cada vez mais largas e cada vez mais lentas, enquanto me não canso e regresso ao campo pela mais curta das rectas que sou capaz de traçar sobre o nada que o gelo e a noite velam. 

O Sul é absoluto e fica exactamente aqui, algures por aqui, assevera Ernesto, o argentino, quando procuro explicar-lhe que o Sul é relativo. Em todo o caso, acrescento, espero ser capaz de o encontrar, de o sentir, descrevendo consecutivas espirais em torno do fulcro ou do polo formado pela Estação Amundsen-Scott, perscrutando-me enquanto observo a noite, o gelo e as puríssimas estrelas da Nuvem de Magalhães. Sirius. Beta Hydri. Sigma Octantis. O Cruzeiro do Sul. Cumprimos elipses gémeas e circulares, eu e as estrelas, cada qual no seu vagar, indiferentes ao transcurso do calendário e aos rumores do mundo. Nenhuma inflação nos atinge, nem nos apoquentam as variações da cotação dos combustíveis fósseis nos mercados internacionais. O próprio vento é lento, é gelado e vagaroso como o tinir de um regato acabado de nascer na serra. Percebo-o na pele do rosto enquanto procedo à minha louca investigação, perscrutando a vastidão do gelo com os olhos do rosto e indagando a minha própria planura com os olhos da literatura, como em busca da improvável revelação de uma verdade que talvez não interesse a mais ninguém. 

Digo muitas vezes a Ernesto aquilo que é o mais óbvio: que, pelo menos desde a odisseia de Ulisses pelo Mediterrâneo, todas as viagens se cumprem  com o intuito de regressar para contá-las, mesmo que, como Amundsen no seu diário antártico, se escreva que não há nada para ver. Nada para ver, repito, apenas o reflexo da luz das estrelas nas paredes da estação científica polar. Não sendo, contudo, possível voltar a descobrir o Sul absoluto, vê-lo outra vez com o olhar inaugural, emocionado e lacrimejante de Amundsen, resta-me encontrar o Sul que haja em mim, o exacto ponto geográfico que roda sobre si mesmo e onde o tempo cessa de existir ou se torna infinito — o tempo, portanto, de redigir esta crónica diletante e tão meridional quanto possível. 

Ernesto, o argentino, é calado e circunspecto, usa uma barba desleixada, à Che Guevara, ou à Cortázar, e parece empenhado em encontrar respostas para certas perguntas científicas. Leva o tempo observando monitores de computadores que registam observações de sondas misteriosas. Algo no seu silêncio indicia, porém, que talvez empreenda também uma busca maior e mais íntima, orientada para os insondáveis abismos da própria consciência, os quais, segundo um poema de Franco Battiato, apenas se pode descobrir fora da cidade, no fim do caminho. A Sul de tudo, acrescento. Em todo o caso, diz Ernesto, como se pudesse adivinhar os meus pensamentos, é possível que seja tudo um enorme desperdício de tempo. Procuro contrariá-lo e digo que é essencial perder tempo, uma vez que só deste modo é possível acreditar que seremos algum dia capazes de compreender aquilo que hoje ignoramos, nem que para isso seja necessário caminhar em círculos e dar a impressão de que estamos perdidos ou loucos. Falo-lhe de Cortázar, de Walser caminhando sobre o gelo, de Céline, de Bolaño, de Borges e de Ulisses, o Ulisses de Joyce, que não é senão uma consciência que avança em elipses e parece dispor de todo o tempo do mundo para desperdiçar e narrar, ainda que ninguém seja capaz de o entender. O objectivo de entrar num labirinto, digo, não reside em encontrar a saída. É provável que não exista sequer uma saída e que o labirinto seja só um pretexto para a indagação e para o extravio. Ernesto olha-me perplexo: O que tem tudo isso a ver com a detecção de neutrinos no espaço sideral? Digo que não sei, que não tenho a certeza, mas que tudo me parece, às vezes, maravilhosamente relacionado e que todas as coisas dialogam no abismo incomensurável do uni- verso. Talvez os escritores, acrescento, sejam também caçadores de neutrinos, ou de um neutrino inútil para as coisas comuns, particularmente fugidio, o qual tenha, até agora, escapado às teorias das ciências exactas. Ernesto encolhe os ombros. Mastiga. Serve-nos mais vinho tinto de Mendoza e brinda ao mistério. Ao mistério que ainda ninguém procura desvendar, digo eu.

Quando nos juntamos para cear, o que acontece a cada seis ou sete horas contadas pelos relógios do resto do mundo, conto a Ernesto das coisas do meu Sul imperfeito e contingente. Falo-lhe das casas caiadas de branco, dos terraços árabes, das ruas estreitas onde outrora houve judeus e oficinas de artesãos; das capelinhas cristãs espalhadas pelos campos de oliveiras, das fontes de água fresquíssima brotando do granito da serra e dos borregos que ficam a ver-me passar quando saio para esticar as pernas pelas estradas em torno da vila. Digo do calor que faz nesse Sul tão doce e tão a Norte do verdadeiro Sul, onde, em Junho, os pássaros parecem cair mortos do ar em chamas e ficam a secar nas calçadas sem que sequer os gatos vadios lhes peguem. Penso nesses pássaros, nas suas mortes, nas suas vidas tão efémeras, e noto que ave nenhuma cruza o céu do verdadeiro Sul, onde faz sempre tanto frio e apenas se sobrevive à custa de anoraques e outras roupas térmicas. Conto a Ernesto dos bandos de andorinhas que na Primavera cruzam o ar da vila em desencontrados vôos, das cegonhas que fazem o ninho nas torres das igrejas e dos abelharucos sobrevoando o olival, espiralando como enleados por invisíveis fios que os unissem numa dança nupcial que se assemelha a uma assombrosa pincelada de cor. A própria palavra abelharuco é um espanto que revoa, chilreia e zune, digo. Ernesto assente com um gesto vago da cabeça e talvez pense nos pássaros de outro Sul ou no frémito de uma outra vida. Talvez tenha saudade e por isso lhe falo também da palavra saudade, que é como um suspiro longo e dilatado por tudo o que se perdeu quando, como Ulisses, se parte em busca do Sul que todos os homens carregam dentro: o lugar sem tempo onde todo o afã se dissolve. 

Às vezes penso, diz Ernesto, como seria se existisse um único pássaro no Polo Sul, uma seriema, por exemplo, ou um pixoxó, para não ir mais longe. O que seria desse pássaro neste vasto deserto branco? Morria, digo eu. Morria de frio e de tristeza e de solidão. Morríamos nós também se aqui estivéssemos são sozinhos como essa única ave singular, limitados à deambulação circular, elíptica, das nossas elucubrações. 

Termino o vinho tinto de Mendoza, torno a vestir o anoraque e ergo a mão para me despedir de Ernesto, o argentino, e sair para a luz espectral da vasta pampa gelada. Detenho-me, porém, à porta do módulo, uma construção semelhante àquelas que talvez, um dia, venham a povoar a Lua, a povoar Marte e Kepler1649c, e digo-lhe que uma vez, no Sul do meu país, um lunático se despediu de mim dizendo que nos voltaríamos a encontrar em Júpiter. Mas não é preciso ir tão longe, acrescento. Teremos sempre o Polo Sul, tão inóspito e distante quanto se possa imaginar. Já não voltas?, pergunta Ernesto. Não sei, respondo. Nunca tenho certezas. Limito-me a caminhar em torno do Sul, ensimesmado, a dar voltas e mais voltas, deixando na neve um rasto de peugadas que talvez se assemelhe à espiral perfeita de Fibonacci ou à deambulação de um velho filósofo bêbedo. Às vezes imagino que me limito a imitar Diógenes de Sinope, o grego, e que deambulo sobre o gelo erguendo diante do rosto uma lanterna de banha de porco, em busca, não de um único homem honesto, mas de uma ideia ou de uma verdade que me salve e redima. Mas talvez procure apenas alumiar o caminho. Não é o que fazem os caçadores de neutrinos e os caçadores de gambuzinos? Ernesto sorri, mas não pergunta o que seja um gambuzino. É possível que, sendo argentino, tenha lido Borges e tenha lido Cortázar, e saiba tudo sobre animais impossíveis, partículas sub-atómicas e outras abstracções. 

Às vezes, digo ainda, antes de sair do módulo polar, às vezes, enquanto caminho em torno do sítio exacto do imaginário Polo Sul, espiralando, creio que adormeço ou que atravesso uma espécie de transe hipnótico. Parece-me que sonho ou que sou visitado por pensamentos que se assemelham a sonhos muitos extravagantes. Tenho, por exemplo, um sonho feliz — do qual acordo a sorrir uma gargalhada cristalina e pura, uma gargalhada que ninguém escuta — cujo enredo sou incapaz de recordar, mas que talvez fosse a imaginação de uma refeição perfeita, um jantar com vinho tinto e amigos, ou a invenção de um texto perfeito que nunca escreverei. Às vezes, digo, sonho que nunca cheguei a sair da esplanada diante da Serra de São Paulo, que ainda ali estou vendo a capela branca da Senhora da Penha, o arvoredo, os olivais ao longe, o vôo das andorinhas, o edifício vizinho do qual desponta uma torre-observatório para vigiar outras estrelas; que está demasiado calor, que cheira a figos maduros e a palha seca, que uma osga nos invadiu a casa e que os gatos miam de noite sob a luz dos velhos candeeiros de gás; que, enfim, me limitei a sonhar uma impossível crónica sobre o Sul, o Sul absoluto, o Sul onde faz sempre tanto frio.

*texto publicado no número 2 da revista Meridional, ontem apresentado no Algarve.