sexta-feira, 20 de maio de 2022

"Uma mensagem da parte de Deus para a tua sexta-feira" — uma crónica do autocarro


Sinto-me hoje bestialmente bem-aventurado — e não só por já ser quase fim-de-semana. Logo pela manhã, transportando os velhos ossos num autocarro dos transportes públicos, reparei na mulher cujo Whatsup (ou lá como aquilo se escreve) transmitia "uma mensagem da parte de Deus para a tua sexta-feira", a dela, bem entendido, embora, como são as coisas?, não tenha deixado de me sensibilizar também a mim que o todo-comunicativo se expressasse de modo tão comum e preocupado com o peso das sexta-feiras na vida de uma mulher-a-dias. Pude, de resto, ver as imagens da humana por cuja boca deus se expressava, embora não fosse capaz de ouvir a mensagem do altíssimo. A mensageira, para não fugir à verdade inteira, pareceu-me uma mulher que estava a tentar vender qualquer coisa, falando e gesticulando demasiado perto da câmara de um computador: tinha o cabelo pintado (decerto com divinas tintas) e parecia mercar algum tipo de banha da cobra. Pus-me, por isso, desconfiado, como é meu péssimo hábito, mas depois compreendi que a "mensagem da parte de Deus" havia sido distribuída pela conta "É graças a Ele", com maiúscula e tudo, o que permitiu afastar qualquer dúvida sobre a origem divina do comunicado. Que feliz há-de ser, pensei, a pessoa com quem deus fala directamente, se calhar pelo Whatsup, se calhar pelo Instagram, ordenando-lhe docemente que espalhe depois a sua mensagem e adoce a sexta-feira dos mortais comuns! O todo-bondoso até pode descansar ao sétimo dia, conforme as escrituras, mas é muitíssimo apaziguador saber que não se dedica à preguiça e à vadiagem sem antes se dirigir às suas criaturas através de uma mulher que talvez venda pacotes de telecomunicações e, por isso, domina as técnicas essenciais do marketing e da empatia. É ainda certo, pela hora matinal a que a mensagem estava a circular nos telemóveis, que deus há-de ter comunicado com a mulher da conta "É graças a Ele" pelo menos de véspera, talvez num fuso horário diferente, o que é um evidente sinal de esperança: se deus já só trabalhar de segunda a quinta-feira, não é impossível que também os humildes humanos venham, algum dia, a beneficiar de uma semana laboral de quatro dias, mesmo que, depois, isso não lhes permita pagar as contas todas até ao fim de mês ou dedicar-se a tarefas mais urgentes como acabar com a guerra, a fome, a peste, a Covid-19 ou a varíola dos macacos. Antes de sair do autocarro, vi que a mulher-a-dias partilhava a "mensagem da parte de Deus para a tua sexta-feira", via Whatsup, com o Zé Luís, cuja sexta-feira também há-de ter sido beneficiada pelas revelações e palavras nela gravadas pela pessoa (nem sequer agradável) com quem deus, ao sexto dia, havia decidido falar.