segunda-feira, 30 de maio de 2022

Para não complicar demasiado


Confessei há não muito tempo, em sessão pública, que cresci lendo os almanaques da Disney (os tio patinhas, conforme lhes chamávamos), o jornal A Bola e uns livritos de páginas dobradas em papel ruim, com histórias de cobóis do velho Oeste — nenhum clássico russo, nenhum Camilo, quando muito Os Três Mosqueteiros do Dumas, se bem me lembro. Mantenho, talvez por isso, uma espécie rebuscada de nostalgia pelos cenários em que decorre a acção — chamemos-lhe assim para facilitar as coisas — de Ao Longe, o tremendo romance de Hernán Díaz publicado há pouco na Livros do Brasil.

Ao Longe, para não complicar, é a história de um rapazinho sueco que se propõe atravesar o continente norte-americano em busca de Linus, o irmão perdido num porto inglês. A narrativa, precisa como um bisturí, acompanha a transformação desse moço num gigante frágil e temível, vestido com um manto que é uma composição da pele de diversos animais, enquanto vagueia pelas paisagens do velho oeste, com os seus índios, os seus shérifes, os seus facínoras, a sua existência sem lei. Cada frase é precisa como um clarão que nos transporta para outros tempos e outros espaços, redigida com a simplicidade que permite ver.

Mal comparando, Ao Longe é como um Walden em que Thoreau que abandonasse a imobilidade da sua cabana no bosque e fosse pela América arrostando a solidão e deparando-se com a inevitável incompreensão e com a brutalidade dos homens que construíram o país dos meus livros de cobóis, esse onde os recreios das escolas são como campos de tiro para toda a espécie de loucos e de fanáticos. Com uma diferença: Thoreau podia sempre regressar a casa, ao conforto de um lar; Falcão, como lhe chamam por confusão, estará sempre demasiado longe de toda a normalidade. 

Leiam-no já. Ou quando quiserem. Falcão nunca tem pressa: vive à margem do mundo, distante das cidades, alérgico ao convívio com o mais daninho dos animais — o homem.