terça-feira, 5 de abril de 2022

"As personagens dos meus livros são mais loucas do que eu" — uma entrevista a Lygia Fagundes Telles em 2005













A escritora brasileira Lygia Fagundes Telles morreu este domingo, aos 98 anos. Soube da notícia por uma jornalista da TSF, que me acordou da sesta pós-prandial para me pedir um comentário. Não soube o que dizer. Depois, aos poucos, lembrei-me de que entrevistei Lygia Fagundes Telles em Maio de 2005, quando veio ao Porto para receber o Prémio Camões. Foi num hotel que já fechou as portas, junto à Avenida da Boavista, e ela fumava cigarros Cartier. Aqui fica a recordação dessa conversa estranhamente actual, que pude recuperar graças ao arquivo de um USB disk com muito melhor memória do que eu.


Não se entrevista Lygia Fagundes Telles; conversa-se com ela. Diante de um bule de chá e de um maço de cigarros, já agora. Com 82 anos, a “grande dama das Letras do Brasil”, que na semana passada recebeu, no Porto, o Prémio Camões, continua a fazer planos para os livros que ainda há-de escrever e a fumar abundantemente. “Uma senhora me perguntou há pouco tempo porque é que eu fumo, se me faz mal, e eu respondi: ‘Eu não presto’”, conta. É, pois, uma mulher com virtudes e defeitos. Como as mulheres dos quatro romances que a Presença agora reedita em Portugal. 

 É verdade que o anterior vencedor do Prémio Camões, Rubem Fonseca, lhe propôs casamento quando soube que agora é uma mulher rica? 

Ah!, não. Isso foi uma brincadeira que acabou por sair num jornal. Como ele ganhou o mesmo prémio, eu perguntei para ele: Rubem, como é o prémio? Quando ele disse quanto era, eu disse: Isso é um dote. E então ele disse: Eu me caso com você. Brincadeira! Imagina! Nós somos muito amigos há muito tempo, eu era amicíssima da mulher dele, que já faleceu. Adoro o Rubem Fonseca, um grande escritor brasileiro, uma pessoa de tanto carácter, extraordinariamente digna. Um irmão! 

 Que importância tem para si este prémio? 

Muita importância. Eu já plantei algumas sementes... Comecei a escrever precipitadamente na minha juventude, com 20 anos, quando entrei na faculdade, mas eu me arrependi dos primeiros livros. Depois é que eu fui amadurecendo. Mas nada de chorar sobre o leite derramado. Prefiro contar a história do meu trabalho – obra fica um pouco imponente... – a partir de 1954, quando escrevi “Ciranda de Pedra”. 

Crê que o prémio pode, de algum modo, estimular um melhor conhecimento das várias expressões da lusofonia? 

Muito, muito. Vocês podem gostar de nós, porque nós amamos vocês, apesar das brincadeiras. Brasileiro é muito zombeteiro, mas eu já estive sabendo que vocês também são e que contam aqui as mesmas graças. Isso é amor, nós somos irmãos. Temos a mesma língua, o mesmo idioma. Só que o idioma com a vida, a moda e o estilo brasileiro. E isso é uma riqueza também, é uma multiplicação do idioma de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa. E o idioma lá do Brasil, de Gonçalves Dias, Machado de Assis, Guimarães Rosa. Temos o nosso modo, mas é uma forma de enriquecer a língua e isso é lindo. 

Normalmente esquecemos as metades africanas da língua... 

Também! É um somatório tão grande. A verdade é que esse ofício de escritor é tão sacrificado, mas parece que o mundo está esquecendo da palavra escrita. 

O prémio pretende homenagear uma carreira e a da Lygia Fagundes Telles já é longa. Os leitores de hoje são muito diferentes dos da década de 1940? O que mudou? 

O motorista que tem andado com a gente me mostrou, em Gaia, as casinhas dos pescadores e contou que eles passam dificuldades, porque estão sem peixe. O peixe está sendo monopolizado pelas grandes empresas de pesca. Do mesmo modo, nós, os escritores, estamos ficando sem leitores, sem peixe, que fica monopolizado pela televisão, pelos electrodomésticos. O que é que nós vamos fazer sem leitores? Continuar. Se eu estou sentindo que os leitores estão diminuindo, ao mesmo tempo encontro um jovem na rua que me abraça e diz “eu leio”. É isto, é esta colheita que interessa, não são as glórias; é aquele que vem, lê o seu texto e conversa com você sobre a personagem. O leitor é seu cúmplice, ele vem e te faz perguntas e, de repente, você percebe coisas que não percebeu quando escreveu o seu texto. E, às vezes, ele cobra. Tem leitores que cobram. Mas é tão bonita, essa coisa... Eu li nalgum lugar que a arte é a forma de restaurar a vida. 

Restaurar a vida? 

Essa vida que está tão complicada no mundo, essa vida de guerra, de ódio, de violência, de desentendimento. 

O que fazem os artistas num mundo como esse? 

Assim... Olhamos um para o outro, damos a mão e isso é o sonho. Cioran, que era terrível, mas eu gosto muito dele, disse essa coisa tão linda: “Eu não quero a sabedoria da desilusão, eu quero a sabedoria da ilusão, que é o sonho”. O que nos resta é sonhar. Fazer o quê? Cortar os pulsos com uma gilete azul? (risos) Gilete azul era uma máquina de barbear que o meu pai usava e ele dizia que era boa para cortar os pulsos. Nunca mais me esqueci. Levar adiante como uma bandeira, é isso. Como canta o Chico Buarque, “com toda a cama, com toda a trama, com toda a lama, a gente vai levar nossa chama”. 

Ouve-se às vezes dizer que alguns escritores, ou todos, escrevem sempre o mesmo livro. Lendo estes quatro que agora vão ser publicado em Portugal... 

Eu queria que publicassem mais contos, eu gosto de contos. Muitas personagens dos meus romances saem dos meus contos. Vocês não percebem, mas eu sei.  

Mas sente que está sempre a escrever o mesmo livro? 

Não… Não é o mesmo livro, não. Há uma metamorfose. Mas, de um certo modo, as personagens voltam, batem na porta (bate na mesa de madeira). É uma forma bonita de renovação. As personagens são como nós mesmos, seres humanos. Nós queremos continuar. A morte, a finitude... não é bom. Com as personagens acontece o mesmo, elas querem continuar. 

Nos seus livros são, normalmente, mulheres; mulheres perturbadas, à procura de si mesmas, angustiadas... 

O escritor não pode ter nenhum preconceito em relação a sexo. Eu tenho personagens masculinos muito bons nos contos. É engraçado... Nos romances, há mais personagens femininas; nos contos, masculinas. Quem são estas mulheres angustiadas que continuamente aparecem nos seus romances? Às vezes... Eu tenho um conto que tem uma mocinha pobre, ela não tem um dente, ri de lado para esconder isso, e vive uma paixão sem chances. Mas ela vai atrás. É um conto ao mesmo tempo desesperado e cheio de esperança. Há algumas mulheres felizes, como essa, cheias de esperança. (pausa) A caça. Ela caçando o homem. 

Os motivos dos tormentos da Virgínia de “Ciranda de Pedra” (1954) são muito diferentes dos da Raíza de “Verão no Aquário” (1963) ou dos da Rosa Ambrósio de “Horas Nuas” (1989)? 

É o desespero mesmo. É justamente a vontade... O ser humano é complicado, é tão enleado nos fios, é tão impossível de ser aberto, de ser decifrado. É um mistério intransponível. Então, as minhas personagens guardam esse mistério. Estes livros correspondem, digamos assim, a épocas históricas diferentes, mas os problemas delas parecem ser muito semelhantes. 

Sentiu alguma diferença nas mulheres ao longo deste tempo? Mudaram muito? 

O problema é eterno. A solidão, a vontade de amor, a vontade da realização, a busca. O ser humano buscando outro ser. Aconteceu com uma conhecida minha, há alguns anos, casada, apaixonadíssima pelo marido. Um dia ele disse: “Querida, eu estou fazendo a mala, vou embora porque eu estou apaixonado por outra” (risos). É bonito isto, essa volubilidade do ser humano em relação ao amor, ao sonho. É isto. É uma busca, uma esperança, um desespero, a vontade de estender a mão para o próximo e o próximo nega a mão. Onde é que está o próximo? Esse problema é eterno: o ser humano buscando o seu outro. A arte aparece algumas vezes, nos seus romances, como um escape para o desespero. 

No “As Horas Nuas” escreve mesmo que “O louco de verdade come merda mas no teatro pode ficar sublime”? Também sucede na literatura? A loucura redime-se nos livros? 

Eu tenho amigos que fazem terapia, eu jamais faria. Uma vez eu fui fazer, fiquei a fazer cerimónia com o terapeuta e não adiantou nada (risos). A minha terapia é escrever, a forma de realizar o meu sonho. Encontrei agora o Urbano (Tavares Rodrigues) em Lisboa com cara de menino. Ele vai ser pai outra vez e está com cara de menino. É isso o sonho! 

Escreve ainda no “As Horas Nuas”: “Mulher pirou nessa luta pelo poder, ficou mais insuportável do que o mais insuportável dos machões”, E, depois: “A fase inicial da agressividade já passou, as mulheres agora estão evoluindo para um entendimento mais profundo no trabalho. No amor(...)”. Esta evolução já lhe permite perceber algumas diferenças? 

Não. Pois é... O ser humano é assim mesmo (risos). Tem as promessas, os sonhos, os projectos, mas, de repente, vem um furacão na sua vida, que você não sabe de onde vem, e desarruma tudo. 

Isso tem alguma coisa a ver, conforme escreveu no “As Meninas”, com o facto de as mulheres não perceberem que o assombro de uns olhos nus supera a beleza superficial de um par de cílios postiços? 

É verdade, é verdade... É tão lindo quando você olha para o espelho e coincide a cara que tem no espelho e a própria cara. É um milagre. No momento em que você aceitar a sua face, sem cílios postiços, você está feliz, aceita a morte. 

A estrutura dos seus livros costuma seguir um método psicanalítico. É a única forma de penetrar nos tormentos destas mulheres, nos tais mistérios da espécie humana? 

Talvez seja uma vontade de resolver os meus problemas através das minhas personagens, que são mais loucas do que eu (risos). Nós queremos nos iludir, apesar das loucuras deste mundo. 

Esse é outro elemento recorrente nos seus livros, a descrição do mundo como algo “completamente apodrecido”. 

Não gosto nem de ler as notícias. Eu não posso fazer nada! Os índios estão desaparecendo, a Amazónia está a ser destruída... Esse seu pessimismo já vem, pelo menos, desde o “Ciranda de Pedra”... É preciso metamorfosear, está certo, mas tem um momento que você tem que aceitar a realidade, a loucura... a loucura do ser humano. Veja D. Quixote. Quem é? Um louco! Um sonhador. E o sonhador é um demente. 

Essa loucura é a origem do mal ou é a salvação? 

A salvação. Ao menos isso. É a salvação. Aquele escritor, o Sebastião da Gama, ele diz que, apesar das velas em farrapos, do casco do navio rebentado, das lutas, o importante é ter dobrado o cabo da Boa Esperança e ter chegado. “Basta dizer que eu cheguei/e que é de lá que vos falo”. 

A Letícia de “Ciranda de Pedra” diz, a dada altura, que “o mal está no próprio género humano”, que “ninguém presta”. O género humano é o vilão ou a vítima? 

É o vilão, a vítima e o herói. É possível você juntar a vilania na heroicidade. “Allez infants de la patrie!” e, de repente, se esborracham todos na lama, na bosta. O esforço que você faz para dobrar aquele cabo, esta força, esta vontade de sonho, é que te conduz. 

O Brasil aparece mais do que uma vez retratado nos seus livros como uma pátria permanentemente em perigo. É uma visão pessimista ou uma forma de contrariar o pessimismo? 

O meu pai já dizia que a situação está tensa. Não acaba mais essa tensão! Estou com essa idade e continua tensa. Mas esse é o mundo que nós herdamos. Temos que ser testemunhas deste tempo e desta sociedade. O meu trabalho é engajado. Eu sou bastante lúcida diante da realidade brasileira, dos desequilíbrios sociais, da miséria, a educação, a saúde. Eu não posso fazer nada. Só sei escrever esses livros que não serão lidos pelos analfabetos, nem pelos doentes. No entanto, eu continuo a escrever. O que é isto? Vou parar? Não. É o sonho. Mas vai ser difícil, o Brasil... 

Tem mais esperança no Brasil ou no tal mundo desvairado e louco? 

É tão ligada uma coisa à outra. Essa esperança... Se eu tivesse uma bandeira, ela seria vermelha e verde. Verde da esperança e vermelho da paixão e da cólera, que ela também é precisa. 

Essas são as cores da bandeira de Portugal... 

Pois é. Fazer o quê? 

Apesar de tudo isto, define-se a si mesma como uma brasileira tranquila. O que é que a faz diferente das mulheres dos seus livros? 

Nenhuma moda, nenhuma vulgaridade em relação à moda me atrai. Eu sou tranquila nesse ponto. Está na moda andar com um pé para a frente e outro para trás, eu continuo andando com os meus pés para a frente, como aprendi a andar. Tenho horror a modismos. Horror! Mas as pobres mulheres põem o piercing na língua. Prefiro aceitar a dúvida, que é muito mais digna do que esses modismos. 

Essa recusa da superficialidade... 

Vulgaridade! Superficialidade chama-se vulgaridade. Essa vontade de mostrar é uma moda. 

Mas essa recusa da superficialidade é parte do segredo para evitar as angústias? 

Serve para evitar as bobagens da espécie humana, pelo menos. O ser humano faz a sua escolha, não quero isso, quero aquilo. E isso é tão bonito no ser humano. Eu odeio Bush, não gosto nem de ler nos jornais. Aquela imbecilidade é, na verdade, uma escolha que não é sequer muito heróica. Os heróis também são frágeis. E loucos. Há muitos loucos nos meus livros, não? 

A tranquilidade face aos modismos é o segredo da aparentemente tão equilibrada escritora Patrícia, de “Verão no Aquário”? 

Eu não sei se ela é tranquila... Tem aquele padre. Ela é amante dele? Eu não sei... Aquele padre é muito bom, viu? Um dia pego esse padre outra vez. 

No livro ele corta os pulsos e morre. Ressuscita-o?

É uma forma bonita que o escritor tem de recorrer aos heróis e anti-heróis e trabalhar com eles outra vez. Isso é uma alegria! Um poder! Toma conta de você. 

Não há, então, personagens tranquilas nos seus livros? Nem os gatos? 

A tranquilidade, às vezes, é uma máscara. O Malraux disse uma coisa muito bonita: o mais importante no homem não é o que ele mostra, mas o que ele traz escondido. É isso que os escritores procuram, então, desvendar. Como? Consigo? Não sei. Mas foi uma tentativa. Uma bela tentativa para desvendar essa natureza humana que é indefinível, inacessível e incontrolável. Vocês mexem aqui com arma de fogo? 

Nada que se compare com o que acontece no Brasil. 

No Brasil agora não se fala noutra coisa. Eu conheço o ser humano, não pode botar uma arma na mão dele. Os garotos encontram essa arma, levam para escola, mostram, vão brincar e, pá!, matam o colega, matam o professor que reprovou eles. Os violentos, os bandidos, os assassinos, os gangs, os traficantes, essa raça toda, já chega! Agora o homem comum também se armar? Vai se defender? Não vai não... 

A Lygia Fagundes Telles revê-se mais na escritora Patrícia, de “Verão no Aquário”, ou na actriz Rosa Ambrósio, de “As Horas Nuas”? 

Eu entrei em todas as personagens, mesmo nos contos, em que há mais vibração e mais homens. Tenho homem à beça, nos meus contos. 

Gosta mais dos contos ou dos romances? 

(longo silêncio) Um professor meu antigo, de Literatura, dizia que o romance é um croquete de camarão que se vende na rua, com muita massa, muita palavrada, só o rabo e a cabeça do camarão, e que no conto está o camarão inteiro, como nos croquetes que são feitos em casa. É uma definição frágil, errada, mas engraçada. No romance também tem que ter o corpo do camarão inteiro. Eu sei que é maior, mas tem que ter tudo, senão não presta. 

Qual é que gosta mais de escrever? 

Quando eu estou escrevendo um conto eu fico tão feliz! Depois acho uma droga, quando termino, mas na hora em que eu estou caçando a palavra, lutando no ringue da palavra, abrindo a porta da personagem, eu estou apaixonada pelo conto. Se eu estou fazendo romance, ah!, que paixão! Há nisso uma volubilidade? Não. É que na hora em que eu faço romance eu também estou pondo o camarão inteiro.