segunda-feira, 4 de abril de 2022

A batata é uma arma?










De todas as tenebrosas imagens que nos últimos dias têm chegado da Ucrânia, ficou-me na retina aquela que hoje o Jornal de Notícias traz na capa, captada pelo fotógrafo Sergei Supinsky, da AFP. Mostra um homem assassinado no passeio, junto de cujo corpo se vê ainda o saco de supermercado no qual transportava algumas batatas. Em segundo plano vêem-se outros cadáveres e um grupo de homens ucranianos que procuram recolher os corpos dos civis que a invasão russa vai deixando para trás.

A despeito daquilo que ontem aqui escrevi, sair alguém de sua casa para comprar maçãs, pêras ou morangos não é sempre um acto tão trivial  como aquele texto dava a entender. O homem da fotografia, pode imaginar-se, arriscou sair à rua após vários dias escondido numa cave — escutando o fragor das explosões, o horror dos gritos dos outros e da morte deles — à procura de algo que lhe matasse a fome. Há-de ter ficado satisfeito e quase assombrado por ter encontrado algumas batatas e um saco para transportá-las, e talvez corresse de regresso ao esconderijo para espantar os filhos com a novidade. Mataram-no, porém, apesar de os russos não atacarem alvos civis, conforme cinicamente têm afirmado os responsáveis do Kremlin.

Milhares de homens, mulheres e crianças depois, assassinados em suas casas, em hospitais ou em teatros, os russos insistem na fantasiosa narrativa da "operação especial" destinada a libertar a Ucrânia. A fazer fé nos argumentos daquela fantasia, a que a diplomacia internacional continua a conceder tempo de antena, é portanto provável que as batatas espalhadas no chão sejam uma arma perigosa e letal, destinada a atacar as tropas russas. Ou que o cidadão morto no passeio seja tão perverso que resolveu suicidar-se com o único fito de embaraçar o palhaço nazi do Kremlin. Tão lógico quanto um saco cheio de batatas.