Saio à rua e chove. Tem chovido com abundância nos últimos dias, mas, visto que ainda ninguém decretou o fim oficial da seca severa, cogito que uma coisa há-de ser a realidade verdadeira e outra, completamente diferente, a realidade tal como a percebo e sinto nos ossos, a qual me molha e resfria. Não há motivo para alarme, pondero. Também não existe nenhuma razão objectiva para que a realidade verdadeira seja mais válida ou fiável do que a minha realidade, talvez um pouco autista, talvez um pouco desvairada, mesmo se a quantidade de produtos nas prateleiras do supermercado insiste em desmentir a impressão de que há uma guerra e fome ao virar da esquina, e notícias que anunciam racionamentos e inflações. Parece-me, é certo, que toda a multidão empurrando melancolicamente os seus carrinhos verdes no princípio deste sábado é também capaz, como eu, de ver os presuntos e os pernis, as pescadas e os polvos, os morangos, os queijos e os grandes pães de Rio Maior, as postas copiosas de salmão, os pródigos nacos de vitela. Mas é possível que tudo resulte da minha confusão, do meu distúrbio, não haja ninguém à espera na fila da peixaria e o PS não tenha ganho eleições com maioria absoluta. Também é possível que nem sequer esteja a chover lá fora e o moço que me serviu o café não o tenha realmente feito com a máscara cirúrgica posta no queixo, como um adereço extravagante do meu metaverso, da minha realidade paralela, desta alucinação inverosímil que insiste em desmentir a realidade verdadeira dos telejornais, os comentadores de tudo e mais alguma coisa e o anúncio do fim do mundo a cada instante.