sexta-feira, 18 de março de 2022

Auto da barca da endemia



Já a barca, lenta, se afasta do cais e as mães chorosas suspiram ais, quando o mofino patrão da barca enxerga vir ao longe um passageiro que parece correr com pressa de embarcar ainda.

DIABO: Alto e pára a barca, que isto não é autocarro. Aquele que vem com a parca, e que agora deita escarro, parece doente tremendo e não caso de catarro. Ponham-lhe a zaragotoa e façam todos os testes. Tudo sem ser à toa, mas que dê para largar prestes.

RETARDATÁRIO DA COVID: Alto lá, chifrudo amigo, que não chego p'ra embarcar. Não contes co'meu umbigo, nem que seja para remar. Vim sem essas intenções e tão-só para avisar qu'isto de ter o vírus não é sinal de espichar.

DIABO (ironizando): Quereis lá ver, ó marujos, que temos aqui novidade? Alguém com os vidros sujos a querer ficar na cidade? Dize o que vens contar, entra lá em negação, que me fazes perder tempo sem trazer a solução. Se vieste para mofar daqueles que aqui padecem, mais te valia ficar onde não me aborrecessem.

RETARDATÁRIO DA COVID: Demo, te peço, sossega, que a pressa costuma ser cega e embarca em toda a viagem. Presto-te a minha homenagem por já teres a barca cheia, mas afasta lá a ideia de me levares na contagem. Também me caçou a doença, foi agora e como não?, mas o meu pior sintoma não excede a constipação. Nem febres nem arrepios, tosse nenhuma, pois é. Nem as dores dos meus tios, nem o cansaço do Zé.

DIABO: Fi'deputa cabrão, que me estragas o negócio. Fala baixinho e embarca, que faço de ti o meu sócio.

RETARDATÁRIO DA COVID: Agradeço o teu cuidado, diabo caça murcões, mas nessa barca não entro nem que fosse por milhões. Tomei todas as vacinas e estou rijo como um pêro. Fico para ver as meninas, formosas como eu as quero.

DIABO: E então o cão sou eu? Trai-se assim o chifrudo? Não sei que doença te deu, se tens as vacinas e tudo. Mas toma cuidado e não queiras toda as moças para ti. Há basofos em todas as feiras e todos mais novos que tu. Se achas que te safaste, ó cidadão pensa bem, hás-de embarcar na barca e nem te vale o vintém.

RETARDATÁRIO DA COVID: Agradeço muito o cuidado, obrigado, diabo amigo. Tenho guardado o bocado e sei bem o que te digo. A morte é coisa fatal e sei que hei-de embarcar, mas não me leves a mal por ainda querer cá ficar. A vida são só dois dias e este está a acabar. Quero comer melancias, beber, dançar e folgar. São cá as minhas manias. Se vou mesmo ter de quinar...

DIABO: Fica p'raí orelhudo, que já perdi muito tempo. Se vais fazer isso tudo, não te dê nenhum tormento. Tenho a barca carregada, pior não hei-de ficar. Esteja a carga despachada e havemos de falar. Se isso que tens é maleita eu quero também apanhar. Já estou farto desta seita, do vírus e deste mar. Guarda-me uma moça direita, já virei para experimentar.