Entre os múltiplos dilemas que cercam e acossam o homem contemporâneo — e, por ter mesmo de ser, também o escriptor contemporâneo —, o mais dilacerante de todos há-de ser aquele que se prende com a escolha do momento certo, do instante exacto em que abandonará o desafio maior da página em branco para dedicar os seus melhores esforços à mundana limpeza dos vidros das janelas.
Entendam desde já, e por favor, que a lida doméstica das janelas não se limita a ser uma questão de higiene íntima, nem de higiene mental, nem, tão-pouco, de higiene pura e simples, e que os vidros encardidos, musgosos, devem ser compreendidos criativa e metaforicamente como uma possibilidade de vislumbrar o mundo através de um prisma que, por não estar particularmente limpo, distorce, modifica e (eventualmente) enriquece a perspectiva que as janelas sujam oferecem sobre a verdade múltipla e diversa do mundo exterior. A realidade e o quotidiano estão efectivamente sujas, enodoadas, ou são os agudíssimos olhos do escriptor que assim conseguem enxergá-los graças à involuntária contribuição de uma janela porca?
Estas e outras questões intrinsecamente filosóficas, e quiçá metafísicas, talvez transcendam o cidadão comum, o homem banal, mas perseguem como lobos famintos o humilde escriptor que não nasceu abastado, não ganhou a lotaria nem foi capaz do brilhantismo, da habilidade e da hipocrisia que lhe garantissem uma carreira de sucesso, permitindo-lhe o gasto espúrio de uma mulher-a-dias que garantisse a correcta e pulcra limpeza dos vidros. Não há-de, decerto, tão pelintra personagem ousar aborrecer-vos por tão pouco, que o é de facto, mas é inevitável que em algum momento se angustie e questione: terá o lodo nas janelas ultrapassado já os limites tolerados pela mais elementar urbanidade? E poderá a distorção que a sujidade proporciona auxiliá-lo a enxergar as deformações da realidade a uma nova e diferente luz?
Muitos e bem melancólicos momentos passa o ordinário escriptor contemplando o mundo, a realidade, através da lente aberrante das suas janelas sujas, ponderando se é, enfim, chegado o momento de reunir os jornais velhos e o frasco de Ajax Cristal a fim de encetar o custoso labor da lavagem dos vidros para que ao menos a vizinhança não repare nas manchas e nas nódoas, e os críticos não percebam de onde lhe vem o olhar único, original e desassombrado sobre o real. Mas quê? Sempre aparece, traiçoeiro como Judas, um dia de chuva ou uma nuvem de poeira do norte de África, alguma inconveniência que bem depressa tornará inútil qualquer esforço para manter limpas as vidraças e desimpedida a vista ancha do escriptor sobre o mundo a seus pés.
Há-de ser melhor, concluirá, esperar mais um pouco — procrastinar. Pode ser que o lodo das janelas ainda renda mais uma frase, um texto ou um livro que possam voltar a espantar o mundo.