sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Passar a ferro, puro exercício filosófico


Entre os hábitos saudáveis que mantenho apesar de tudo, conta-se a leitura regular dos melhores cronistas do El País (jornal que ainda tem cronistas a sério e não apenas políticos, celebridades e estrelas pop que talvez possam render mais algumas centenas ou milhares de cliques para as estatísticas do marketing orgânico). Deste modo, fiquei esta manhã a saber que o Juan José Millás ocupa tardes inteiras a passar a sua própria roupa a ferro, ainda que, no seu caso, engomar não seja uma mera prenda doméstica (como se dizia antigamente). Há neste seu labor, ou assim parece, toda uma filosofia, uma praxis reflexiva que a mim, praticante irregular e muito menos obsessivo daquele exercício, me havia escapado (o que não chega a ser novidade nenhuma, pois é sempre muito mais o que me passa ao lado do que aquilo que chego a entender). 

Acompanhando o raciocínio de Millás, posso supor que, embora engomar (ou cozinhar, ou lavar a louça) também contribua para fazer de mim um tipo mais decente, jamais alcançarei certas minúcias intelectuais pelo simples facto de não me dedicar tão afincadamente, de modo tão perfeccionista, à eliminação de todos os vincos e rugas, e muito menos à (para mim) inútil engomadura da roupa interior. Aprecio andar lavado, penteado e relativamente aprumado, mas não careço de cuecas passadas a ferro, nem de peúgas passadas a ferro, se calhar porque, não tendo uma alma, me falta também o pretexto segundo o qual as roupas íntimas são aquelas que ficam mais próximas do espírito.

Estabelecidas as devidas distâncias entre um engomador e outro, e compreendidos, por consequência, os limites da minha agudeza e do meu esmero existencial, não deixo, porém, de declarar o que me parece fundamental. Enquanto passo a ferro, cozinho ou lavo a louça, disponho como de uma cápsula à qual não chegam o ruído infernal do mundo nem as solicitações mundanas. Nela isolado, protegido, sou muitas vezes capaz de pensar livremente e até de chegar a ter uma ou duas ideias decentes. Até à Kim Novak há-de ter acontecido.