quinta-feira, 4 de novembro de 2021
Quanto há num gesto
No declinar da tarde, à beira-mar da Foz, prendeu-se-me ontem a atenção numa velha e pálida senhora burguesa que tomava sol na sua cadeira de rodas — o olhar ausente, imóvel e tristíssimo, indiferente e abandonado no horizonte, próprio, se calhar, daqueles que não sabem já o motivo de continuarem vivos. Era um semblante que entrava pelos olhos dentro e que talvez pudesse ter-me distraído do essencial. E o essencial era o gesto carinhoso da criada crioula, talvez brasileira, talvez cubana, ampla e matriarcal. Sentada no murete, a sopeira afagava a cabeça da patroa com os dedos de uma mão, enfiando-os nos cabelos prateados e movendo-os numa carícia lenta e demorada, se calhar diligente ou apenas submissa. Pareceu-me, porém, perceber carinho no afago da criada; o inexplicável carinho que alguns escravos dedicam aos carcereiros.