quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Pela hora dos pardalinhos



Comecemos pelo fim. 

Escrevo-vos, improváveis e contados leitores, a partir de uma esplanada onde se faz já sentir o vento que há-de trazer a chuva anunciada para os próximos dias. Choverá muito ou pouco, mas parece que a coisa é já certa e a borrasca domina as conversas da vila. Talvez arranque telhados. Talvez os cães bebam água em pé.  Devo, se calhar, tratar de acautelar as minhas goteiras, mas, para já, faço como os demais: tomo café ao vento, proveito os últimos raios de sol e degusto o meu pardalinho, que é como aqui se chamam aos minúsculos copos onde servem as bebidas brancas. As favas do almoço estavam excelentes, obrigado. Adiante.

Acresce que esta manhã gozei as delícias de estar próximo da fronteira com Espanha: cigarrilhas baratas, gasolina idem e o El País em papel (que jornalaço!; ainda só o li até à página 12, mas não se encontra qualquer semelhança com as folhas de alface chinfrim que cá se imprimem). As ruas ainda estavam cheias, mas, por esta hora, a vila do lado de lá há-de estar já tão pacífica e deserta como a percorri há dias, em plena hora da siesta. Não serão cidadãos exemplares, os da velha Extremadura fascista, mas não há que duvidar: sabem levar a vida pós-prandial. Deitam-se, dormem, descansam e ninguém os vê a flanar pelas ruas até às cinco da tarde, tampouco a escrever posts nas esplanadas do lugar.

No caminho entre um e o outro lado da extrema, costumo deitar o olho aos abutres que voam em círculos sobre o cerro dos montes, à cata dos respectivos almoços. São aves inquietantes e maravilhosas, embora me recordem, na sua rapina, certos personagens que esta semana se preparavam para cair a pique sobre a carcaça moribunda da geringonça (de boa memória, mas tão imprevidente que talvez tenham atirado fora a criança com a água do banho). 

Acompanhei o suicidário festim com a distância devida a um (temporário) cidadão do interior esquecido e confesso não ter percebido patavina. Também não sei o que fazer para tentar evitar, ao menos, que o poder caia nos braços de um Rio ou de um Rangel, ou de alguma coisa ainda pior (a avaliar pelo chiqueiro que para aí vai). O meu primo carpinteiro já ontem se atreveu a declarar que mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia. Livra! Onde é que, depois, eu ia comprar gasolina e cigarrilhas baratas sem estar a cometer algum crime de contrabando? E se, entre muitas outras coisas, nos proíbem também os pardalinhos?