terça-feira, 30 de março de 2021

Lei seca










A famosa emenda constitucional norte-americana vulgarmente conhecida como Lei Seca foi estabelecida em 1920. Visava, alegadamente, salvar o país da violência e da pobreza, inspirando-se também nas teorias do médico Benjamin Rush, que considerava o álcool prejudicial à saúde física e psicológica. O resultado é conhecido e deu origem a vários filme de Hollywood. 

Um século depois, impulsionado pela Covid, o proibicionismo sanitário e puritano regressou em força e invadiu a Europa. Não abraçarás, não beijarás, não participarás em festas, não tomarás café, não comerás fora de casa, não cortarás o cabelo, não irás à escola, não cumprimentarás, não conversarás, não integrarás ajuntamentos com mais de cinco pessoas, não viajarás, não circularás entre freguesias, não festejarás o São João, não porás o nariz na rua sem uma máscara... Independente da bondade e da necessidade das restrições, e do carácter aleatório e medieval de algumas medidas, a lista das regras dos sucessivos estados de emergência e confinamentos é infindável e tão sofisticada que faria os moralistas da Lei Seca corarem de vergonha.

Tal como há cem anos, haverá já poderosas máfias enriquecidas com o tráfico de máscaras e álcool-gel, com as vacinas vendidas em mercados paralelos, com os falsos certificados de trabalho e residência, com a venda de voos em jatos privados (os ricos nunca cumprem as proibições impostas à ralé e refocilam amenamente nas praias do Dubai) ou com a organização de festas privadas clandestinas. Não é preciso, sequer, imaginá-lo. Basta ver como o mesmo Estado que proíbe viagens na semana da Páscoa tolera que os hotéis estejam abertos e a facturar, e as companhias aéreas transitando quase à vontadinha.

Semana após semana, durante o período que durou a nossa última voz de prisão, habituei-me a passar a correr à porta de um estabelecimento que, impedido de vender cafés "ao postigo", tinha a porta fechada e uma cortina preta por trás do vidro. Cá fora, porém, havia sempre uma pequena multidão ansiosa de cafeinómanos à espera da sua vez de entrarem clandestinamente, para, suponho, tomarem copiosos cafés ilegais, eventualmente uma mini ou outra, um traçadinho ou um pecaminoso Favaíto. Acontecia a nem duzentos metros do comando metropolitano da polícia. Como durante a Lei Seca, ninguém via.