quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Partir os ovos sem fazer omeletes

O rabino do meu bairro tem um aspecto bastante extravagante, indolente, como se fosse ao mesmo tempo rabino e hippie, provavelmente porque usa as camisas brancas um pouco amarrotadas e com as fraldas por fora das calças, ou porque as longas barbas parecem um pouco encardidas, sobretudo agora que as traz parcialmente escondidas debaixo da máscara cirúrgica da praxe, doravante obrigatória até a céu aberto e nos dias mais gloriosos. Suponho, por isso, que vamos todos assemelhar-nos um pouco a loucos assustados de que o céu nos caia em cima da cabeça, exactamente como o rabino do meu bairro quando ontem regressava de comprar ovos no supermercado. Sei que o guia espiritual levava ovos no saco de papel ambientalmente responsável porque, quando nos cruzámos, o fundo da frágil bolsa se rasgou e a sua carga se esborrachou no chão, privando a criatura de deus, a sua voz e mensageiro, da omelete que, se calhar, planeara comer ao almoço. Talvez, ao menos — foi o que pensei —, o incidente lhe inspire uma exemplar parábola sobre os ovos que se partem e não chegam a ser omeletes. Trata-se, creio, de uma metáfora aplicável a diversas ocasiões da vida singular e colectiva. Assemelha-se muito, por exemplo, ao exercício levado a cabo por quase todos os governos do mundo quando decidiram arruinar economias inteiras, famílias inteiras, sem, todavia, conseguirem controlar a peste do século. Os ovos estão, pois, quebrados, mas à omelete ninguém a comeu.