quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Estas trevas

Parodiei há dias, talvez se lembrem, o facto de quase não haver semana em que não saiam novos livros dedicados a explorar a devoção dos leitores pelas histórias que têm por pano de fundo o campo de concentração de Auschwitz. Parece-me, todavia, que o post me saiu demasiado ligeiro e apressado, tendo nomeadamente em conta as implicações superficiais e profundas do aproveitamento e da banalização de Auschwitz enquanto cenário de ficções habitadas por mágicos e bebés, tatuadores, carteiros, irmãs, gémeas, bailarinas, farmacêuticos, bibliotecárias e anões trapezistas, todas prometendo "histórias verídicas", "reais", e "inesquecíveis" exemplos de amor, coragem e sobrevivência. 

Logo um ou dois dias depois de ter publicado aquele post, que agora apaguei, li algures os resultados de um estudo que cabalmente demonstra que a avalancha de ficções ambientadas em Auschwitz, bem como a aparente apetência do público pelo consumo destes produtos, está longe de ter como resultado uma maior consciência colectiva relativamente ao absoluto horror do campo de concentração, daquele e de inúmeros outros. Segundo um inquérito então divulgado, quase dois terços dos jovens norte-americanos ignoram que seis milhões de judeus foram exterminados pelos nazis. Um em cada dez imbecis desses consideram até que os judeus foram responsáveis pelo seu próprio extermínio. 

Não nos deve descansar o facto de aquele inquérito, amplamente divulgado pelos sites nacionais de actualidades, ter sido realizado num país capaz de eleger um presidente tão disparatado como Donald Trump (tão semelhante ao personagem louco de Kubrik, o cowboy louco sentado em cima de uma ogiva nuclear). Também na Europa, sabêmo-lo demasiado bem, há negacionistas deste e de outros holocaustos, e energúmenos capazes de repetir os mesmos erros e as mesmas atrocidades do passado. E quem, com a mesma facilidade e eficiência, esteja disposto a perseguir ciganos, negros, chineses, homossexuais, mulheres demasiado livres ou migrantes de qualquer etnia. 

Uma parte do crescimento da horda destes energúmenos deve-se, creio, à facilidade com que qualquer imbecilidade, qualquer mentira, qualquer informação manipulada, circula facilmente no charco podre das redes sociais, intoxicando e confundido de tal forma que — em dado momento que talvez alguma ciência social futura venha a estudar — apenas uma minoria passou a ser capaz de distinguir a verdade e os factos, destrinçando-os de todo o lixo imundo que a cada segundo é despejado na rede. Nada está a salvo destes celerados — nem sequer a esfericidade do planeta que habitamos ou as vantagens da vacinação para a saúde pública. Nada parece distinguir a mais torpe das crendices de uma verdade cientificamente demonstrada. 

O avanço desta nuvem negra, desta treva, beneficiou muito substancialmente da letargia e da permissividade das redes sociais, as quais, alegadamente ao abrigo da defesa da liberdade de expressão daqueles que a não toleram, se recusaram a agir a tempo e a cortar o mal pela raiz, proibindo, por exemplo, publicações que atentassem contra a mais elementar dignidade humana, propaganda fascista ou óbvias manipulações lesivas da honra de terceiros e da democracia em geral. Mas se nem as instituições mais respeitáveis, como os chamados órgãos de comunicação social, o fizeram... Assim, o lixo, esta sordidez nojenta, tem circulado impunemente e minado, minuto a minuto, os fundamentos frágeis das sociedades democráticas, dos estados de direito e da vida dos homens livres e honestos. 

A decisão, ontem anunciada pelo Facebook, de banir publicações que neguem ou distorçam o Holocausto — considerando agora alarmante o nível de ignorância dos jovens — chega, portanto, demasiado tarde. A ignorância é a pior das trevas e tem avançado por aí a pano solto. Medra por toda a parte, mas também (e sobretudo) na redes sociais que dela se alimentaram, a massa bruta disponível para todas as intoxicações, manipulações e ódios. E o pior: olhando-se em torno, quase não se enxerga a réstia de alguma luz.