sábado, 24 de outubro de 2020

O mel não se fez para a boca do asno

Segundo um adágio que só hoje conheci, não se fez o mel para a boca do asno. Há-de ser por detalhes assim preciosos que o cidadão comum não chega a ser capaz de compreender que sentido faz decretar um confinamento obrigatório da população, conforme já se fez e agora volta a ser equacionado, se logo a seguir vai ser necessário pedir às pessoas que voltem a frequentar restaurantes e a fazer férias aqui e ali, aliciando-as, inclusive, com a maravilha da devolução do IVA. Talvez pareça um pouco esquizofrénico isto de nos protegermos hoje para que amanhã, ainda vivos, como zombies regressados de além-morte, nos ordenem que nos misturemos e consumamos como nababos para salvar a economia em sítios onde os sãos e os doentes estarão, outra vez, misturados e partilhando toda a sorte de vírus e miasmas — mas, a ser esse o caso, convém desde logo ter em consideração que há doutores disto e daquilo, muito mais inteligentes do que a arraia miúda, descobrindo, agora, que os vírus se dissipam ao ar livre e, daqui a nada, que é de toda a conveniência usar máscara cirúrgica na via pública. Não haja dúvida. Conforme escreveu o velho Torrente Ballester, que já ninguém lê, "é preciso uma grande habilidade dialética e uma grande fé nos nossos raciocínios para manter o respeito por nós próprios quando saímos da casa de banho". Ou, acrescente-se por óbvia analogia, quando se anda na praça pública dos noticiários a mudar de opinião e certeza mais vezes do que um bebé troca de fralda. O contentor (e as moscas) mudarão; o conteúdo é quase o mesmo.